Sem condições de viver do cultivo da terra, 339 mil famílias recebem o benefício
O GLOBO
Hoje, 36% das famílias assentadas dependem de ajuda do Bolsa Família para sobreviver. Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), 339.945 das 945.405 famílias que vivem em assentamentos recebem o benefício destinado aos 22 milhões de brasileiros classificados como miseráveis (renda por pessoa de até R$ 70, para famílias com ou sem filhos, e de até R$ 140 para famílias com filhos).
Se consideradas todas as famílias de assentados inscritas no Cadastro Único do Ministério do Desenvolvimento Social que são pobres o suficiente para fazer jus a algum tipo de programa social (renda mensal por pessoa de até R$ 339), o número sobe para 466.218, o equivalente a quase metade (49%) de todas as que já receberam terras no país. Ou seja, de cada dez assentados, entre quatro e cinco não alcançaram emancipação financeira que permita retirar da terra, além do sustento, algum dinheiro para vestir, educar os filhos e ter confortos, desejos primários para quem se insere no mercado consumidor capitalista, cuja origem é justamente a propriedade da terra.
A situação dos assentamentos levou o secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, a dizer em fevereiro que eles se assemelham a “favelas rurais”. Em janeiro, O GLOBO mostrou que oito em cada dez jovens já deixaram os assentamentos em busca de uma vida melhor, ou pretende fazê-lo, segundo a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Fetraf).
— Quando se candidatam à terra eles já são pobres. Depois de assentados, a qualidade de vida melhora, mas não muda o status de família pobre — diz Alexandre Valadares, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Os especialistas são unânimes ao listar os problemas da reforma agrária brasileira que impedem as famílias de gerar renda significativa. A começar pela qualidade das terras e o tamanho das propriedades, consideradas pequenas. Vários assentamentos são feitos em áreas de solo ruim ou que já foi esgotado pelo uso excessivo. Além disso, o crédito é difícil e escasso e os beneficiários têm dificuldade para se articular em torno de elementos fundamentais para o sucesso da produção, como obtenção de técnicas mais avançadas ou negociação com canais de distribuição e venda das mercadorias produzidas.
Os entraves levam muitos assentados a usar a terra só para morar e plantar para consumo próprio. Em sua tese de doutorado na Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp-Botucatu, defendida em 2011, Marcelo Magalhães diz que o grau de ocupação efetiva das terras disponibilizadas pelo Incra é baixo, só 23,6%, o que sequer permite o desenvolvimento de ganhos de escala.
Muitos assentados buscam ocupação fora de suas terras. Fazem serviços temporários em grandes propriedades rurais do entorno ou são prestadores de serviços nos centros urbanos próximos, em geral com trabalhos mal remunerados, como pedreiros.
Crateús (CE) é um retrato dos erros de um modelo de reforma agrária que perpetua pobreza. O nome da cidade significa “coisa seca ou lugar seco”. Em junho passado, nove servidores do Incra foram condenados numa ação de improbidade administrativa por desapropriar, por R$ 622 mil, um imóvel rural considerado “imprestável” para assentamento, além de levar o órgão a gastar mais R$ 387 mil para tentar viabilizar o inviável, ou seja, o plantio.
O município abriga sete assentamentos federais e pelo menos 12 estaduais onde imperam, segundo a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ceará (Emater), culturas de subsistência (milho, mandioca e feijão) e dependência de recursos de programas sociais. Com 20% da população classificada como extremamente pobre, Crateús tem 10.386 famílias listadas no Bolsa Família, das quais pelo menos 1.514 são classificados como agricultores familiares e assentados.
— A maioria dos assentados espera por tudo do governo. E quem pegou crédito está inadimplente, à espera de anistia. Falta interesse — diz Wilson Mourão Soares, gerente da Emater no município.
No Ceará, 47% dos assentados têm renda máxima de um salário mínimo. Pior: 44% dessa renda são benefícios sociais dados pelo governo e 8% correspondem a ganhos com trabalhos externos, fora das terras recebidas. A produção agrícola responde por menos da metade da renda (48%), que já é pouca.
Mas há vários casos de reforma agrária bem sucedidos. Os assentamentos no país respondem por 9% da produção nacional de arroz e entre 8% e 11% dos feijões consumidos no Brasil, segundo o Censo Agropecuário de 2006. Em Santa Catarina, 76% da renda dos assentados são provenientes da posse da terra, seja produção de leite ou cultivo. Em Santa Catarina, os assentamentos são menores em extensão e em número de famílias, e inseridos numa região onde a agricultura familiar é tradição.
Um estudo feito pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário sobre qualidade de vida, produção e renda nos assentamentos, publicado em 2010, dá mostras do que pensam os assentados: 57,89% disseram que as estradas de acesso às terras são péssimas ou ruins, percentual que sobe para 65% no Norte e Nordeste; 21% que a água é insuficiente; e 56,14% informaram que não têm energia elétrica ou que o fornecimento é irregular.
O economista Guilherme Lambais, em sua tese de mestrado no Instituto de Economia da Unicamp, diz que a reforma agrária melhora a segurança alimentar, já que o beneficiário, pelo menos, planta para comer, mas ressalta que falta aos assentados um requisito fundamental para prosperar: o empreendedorismo.
— Muitos não buscam financiamento porque temem o risco e, por isso, não vivem da terra. Ou vão trabalhar fora ou vivem da assistência do governo. Não basta dar a terra, é preciso retirar as pessoas da armadilha da pobreza — afirma Lambais.
Segundo Lambais, os assentamentos mais bem sucedidos entre os visitados por ele num trabalho sobre o programa Cédula da Terra, onde os sem-terra financiam a aquisição da área, são os que têm uma liderança técnica, não política.
— As associações de assentados devem ser livres de interferências políticas para que os interessados possam se juntar por características semelhantes, com um objetivo comum. Há comunidades que se juntaram para plantar maracujá, por exemplo — afirma o economista da Unicamp.