Em um processo penal, o depoimento representa uma oportunidade de defesa para o réu e seu último encontro com o juiz. Uma etapa trivial, dizem advogados. Por que, então, se faz tanto barulho a respeito do interrogatório do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, réu na Operação Lava Jato?
Segundo professores de direito e cientistas políticos entrevistados pela BBC Brasil, no caso do petista, que será interrogado pelo juiz Sérgio Moro nesta quarta-feira em Curitiba, o momento passou a ter mais relevância política do que jurídica.
Para especialistas, embora seja apontado pelo Ministério Público como coordenador do esquema de corrupção – algo que ele nega -, Lula não deve dar informações que tenham impacto em outros processos da Lava Jato. Isso se dá pela própria natureza dessa etapa, focada na defesa – ele será ouvido sobre a ação na qual é acusado de corrupção e lavagem de dinheiro na aquisição de um tríplex no Guarujá (SP).
Além disso, mesmo que haja uma sentença, será possível recorrer a instâncias superiores, e uma prisão é improvável.
No entanto, pela força política do ex-presidente e o cenário polarizado do país, criou-se a expectativa de que haja um vencedor no que muitos encaram como o confronto entre Lula e Moro. Espera-se que, a depender das perguntas dos procuradores ou das respostas do petista, operação ou réu saiam favorecidos.
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Impacto jurídico
Em nota recente, a defesa do ex-presidente afirmou que o interrogatório será “a chance de recuperar a verdade dos fatos pelos quais tem sido injustamente atacado. Lula nunca se negou a prestar qualquer informação à Justiça, mas tem enfrentado uma avalanche de acusações – sem prova – , na esteira do vazamento de delações premiadas, negociadas por réus em troca de liberdade”.
Do lado jurídico, o interrogatório serve para a defesa do réu. É quando ele tem a chance de se autodefender perante o juiz. Se quiser, Lula pode ficar em silêncio ou responder apenas às questões de seus advogados, explica a procuradora regional da República e professora da FGV Silvana Batini.
“Não tem nada de excepcional. Vai depor porque é réu e o código de processo penal assim determina”, diz.
Batini afirma que o interrogatório não pode ser visto como um “palanque” ou um confronto entre juiz e acusado. Até mesmo porque, na ação, procuradores e advogados são os que estão de lados opostos. O juiz é responsável apenas pela análise.
“É um processo formal, solene, com regras de funcionamento muito específicas.”
No contexto do direito, o elemento que chama mais atenção é a possibilidade de novas provas surgirem aos olhos da opinião pública.
“Essa é a grande relevância. É o momento no qual os dois lados tentaram convencer o magistrado sobre suas teses. É quando se pode ver ou não as teses de cada um. Cabe ao juiz olhar com imparcialidade essas provas”, diz o presidente da associação Juízes para a Democracia, André Bezerra.
Obviamente, isso terá consequências no processo de Lula, afetando a decisão de Moro, mas não deve ter impacto na operação como um todo, afirma Bezerra.
As palavras do ex-presidente sequer têm valor probatório para afetar outros envolvidos na Lava Jato, explica o presidente da ADJ. Elas podem, no máximo, servir de indício para abrir investigações.
Também é improvável que Lula seja preso. Como ainda há sentença, seria o caso de uma prisão preventiva, usada para impedir destruição de provas, fuga ou ameaça à ordem pública. Para Bezerra, se houvesse evidência concretas dessas posturas, o ex-presidente já teria sido detido.
“O fato de uma pessoa ser processada, por si só, não leva a prisão. A não ser que tenha algo recente que a gente não saiba.”
Mesmo que seja condenado, explicam os especialistas, Lula poderá recorrer a instâncias superiores, já que Moro é juiz de primeira instância. O petista pode aguardar em liberdade até que seja condenado na segunda instância, segundo entendimento recente do STF.
“Vai ter uma sentença, mas não põe fim ao processo. Tem um caminho processual grande e que transcende a figura do Sérgio Moro”, diz Silvana Batini.
Impacto político
Ao deixar a legislação, entra-se no contorno político do depoimento. E aí que as expectativas estão concentradas.
Por Lula ser ex-presidente, uma forte liderança política do país e declarado pré-candidato, é natural que todas as etapas da ação ganhem notoriedade, dizem os cientistas políticos entrevistados.
Em um cenário de poucos líderes e de muita polarização, na qual o petista representa um dos lados, o fato tem ainda mais peso.
Também entra nessa fórmula a importância que ele é acusado de ter – e nega – para o sistema de corrupção investigado, de acordo com os dados apresentadas pelo coordenador da força-tarefa da Lava Jato, procurador Deltan Dallagnol. Ao explicar as denúncias contra Lula em setembro do ano passado, Deltan o chamou de “comandante máximo” do esquema.
“Há uma tensão grande, porque o Lula tem sido apresentado como o principal suspeito da Lava Jato”, diz o cientista social e professor da Unesp Marco Aurélio Nogueira, que pesquisa partidos e sociologia política.
Nesse cenário, diz Nogueira, aguarda-se o desempenho de acusação e defesa, para saber quem vai conseguir “encurralar” quem.
“Se, no interrogatório, os procuradores apresentarem algo forte contra Lula, podem encurralá-lo, caso ele não consiga responder tranquilamente. Agora, se a abordagem for fraca e não trouxer elementos de novidade ou contundência, a operação pode perder prestígio.”
Mesmo citando os possíveis desdobramentos políticos, o professor vê uma “inflação de expectativas” em torno do interrogatório.
Para ele, o clima polarizado do país é responsável por esse efeito.
“Isso acaba influenciando dramaticamente qualquer acontecimento. É uma verdadeira loucura.”
Sem impacto
Atiçadora de ânimos antes do depoimento, a mesma polarização pode ter o efeito contrário depois de quarta-feira: diminuir o impacto da fala de Lula, diz o cientista político Nuno Coimbra, pesquisador do núcleo de pesquisa de políticas públicas da USP.
Ele afirma que, num ambiente tão dividido, as pessoas já escolheram seu lado e dificilmente mudarão de ideia.
“Independentemente das imagens que vão pro ar, partidários do Lula e simpatizantes do PT tenderão a ver qualquer coisa que aconteça como prova de perseguição e aqueles que, do outro lado, acreditam que Lula é culpado e que a Lava Jato está fazendo um ótimo trabalho tenderão a interpretar qualquer coisa como sinal de que o petista se complicou.”
Para Coimbra, fatos novos não devem desmantelar esse fla-flu: “É muita carga de informação, de atores políticos, de envolvimento de corrupção. Todos os maiores nomes da política já estão envolvidos. Para mim, o que tinha para causar impacto, no sentido de jogar para a opinião pública, já aconteceu.”
Politização
Outros entrevistados pela BBC Brasil dizem que, além do agitado cenário de fundo, Lula e membros do Judiciário contribuem para a politização do interrogatório.
O primeiro o faz por meio da política partidária, diz Coimbra.
Ele politizaria a situação se colocando no extremo oposto do juiz Sérgio Moro. Ao pôr pressão sobre o Judiciário, criaria um ambiente que o beneficiaria no tribunal.
Segundo Coimbra, juízes e procuradores também politizam, mas de forma diferente, a partir de um projeto político.
“Nao é necessariamente um projeto político partidário como muita gente entende: ‘ah, eles querem sair nas eleições’. Eles têm um projeto no sentido de atuação política. Acreditam na moralização do país, têm uma concepção voltada para isso.”
O pesquisador se isenta de fazer avaliações sobre os benefícios ou prejuízos desses posicionamentos.
Outro elemento importante, acrescenta o professor da UFPR (Universidade Federal do Paraná) Manoel Eduardo Camargo e Gomes, é a própria natureza do direito.
Para Gomes, não há direito sem política – ou política sem direito.
“Ainda que se queira postular um direito puro, isso não existe. É no mínimo uma ingenuidade.”
O que não pode haver, opina o professor, é a espetacularização dos processos jurídicos. Justamente o que acontece agora, com o depoimento de quarta-feira.
Mesmo que elogie o esforço da Lava Jato contra a corrupção, ele questiona sua repercussão política. E o impacto que a operação, aliada a um cenário polarizado e de falta de lideranças, poderá ter na democracia.
“Não tenho capacidade de mensurar a repercussão política. Mas o conjunto das decisões tem consequências, e ela, do ponto de vista da democracia, merece reflexão”, diz.
“Na Itália, isso (com a operação Mãos Limpas) resultou na ascensão do ex-premiê Silvio Berlusconi.”