A Gazeta
Estacionar o carro em uma das ruas de Cuiabá e ser abordado por um flanelinha faz parte da rotina de qualquer motorista. Apesar disso, nenhuma instituição pública possui um levantamento sobre a quantidade de trabalhadores informais que atuam hoje na Capital. Entre os empecilhos estão a falta de interesse deles próprios em regulamentar o ofício, muitas vezes pela vontade de manter a falta de controle por parte de algum poder público ou pela impossibilidade diante da análise da ficha criminal, porque muitos possuem antecedentes e seriam barrados durante o processo.
Esse “mercado” foi tema de uma dissertação de mestrado que aponta, inclusive, que os flanelinhas têm uma organização própria. Já a Polícia Civil, que tentou fazer um cadastro destes trabalhadores, no primeiro momento conseguiu identificar 50, mas destaca que o trabalho não teve continuidade devido à dificuldade em fazer a atualização.
John Lennon Saron Henrique, 34, há oito anos divide com outro flanelinha o ponto das vias da avenida Historiador Rubens de Mendonça (CPA), entre o Banco do Brasil e um famoso bar, de domingo a domingo, a partir das 7 horas da manhã. Ele conta que desde que chegou a Cuiabá, em 2007, este é seu trabalho, mas não vê a possibilidade de uma regulamentação porque há uma organização entre os próprios flanelinhas. “Nós já temos onde ficar, não precisamos de nenhum tipo de controle. Nós mesmos já fazemos isto”.
Professor de Ciências Sociais do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT) e mestrando em Estudos de Cultura Contemporânea (Ecco) na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Juliano Batista dos Santos, 34, produziu a dissertação “Riscos e estratégias de sobrevivência”, tendo como personagens os flanelinhas e malabaristas de Cuiabá. O objetivo do trabalho é abordar a informalidade e o pagamento do serviço, desnecessário, oferecido. Nas pesquisas, o estudante tomou conhecimento da regulamentação da profissão no Cadastro Brasileiro de Ocupações (CBO), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), e que a ilegalidade no ato de flanelar ocorre quando a Delegacia Regional do Trabalho (DRT) não emite uma permissão.
Dentre os entrevistados, na região do Shopping 3 Américas, para o trabalho alguns comentaram sobre a formalização, mas sabem que não conseguiriam diante do critério de avaliação criminal porque muitos são ex-presidiários. “Eles têm conhecimento que não conseguiriam a permissão e também do que isso pode acarretar no futuro por causa das condições em que desenvolvem as atividades. Sem reconhecimento, não acessam os diretos trabalhistas, por exemplo”.
No trabalho, Juliano aponta que entre os flanelinhas há uma organização, que ele definiu como: titulares, avulsos e penetras. Os titulares são aqueles que estão no ponto há tempo, vão para o local todos os dias. Os avulsos aparecem algumas vezes, por exemplo, aos finais de semana, normalmente exercem a atividade em algum outro lugar que tenha funcionamento de segunda a sexta-feira e iam para o shopping aos finais de semana, complementar a renda. Os penetras aparecem raras vezes, não criam nenhum vínculo, não são aceitos pelos demais e acabam expulsos.
O mestrando explica que há uma dinâmica interessante entre os flanelinhas. “Eles estão divididos entre os que realmente olham os carros e os que não olham e, normalmente, os que vigiam realmente, eu percebi que aqueles, daquela região, não faziam uso de drogas e não queriam usuários por perto para não espantar a clientela e atrair a polícia”.
Juliano complementa que qualquer problema que surgisse entre os trabalhadores, era resolvido entre eles, sem envolvimento das autoridades, e muitas vezes, poderia envolver a violência.
Em sua análise, Juliano percebeu que a região do Shopping 3 Américas era subdividida, pelos próprios trabalhadores, em seis unidades e que muitas delas eram altamente lucrativas. Em um dia considerado “bom” o flanelinha poderia conseguir até R$100. “Era interessante ver isso. Por exemplo, ali na avenida Brasil, há um trecho onde o flanelinha permitia que só motos fossem estacionadas. Assim, o ganho era maior porque o espaço ocupado por um carro que pagaria R$ 2 poderia ser ocupado por quatro motos”.
Juliano destacou em seu trabalho que alguns flanelinhas possuíam um bom relacionamento com as pessoas da região e acabavam criando uma proximidade.
As entrevistas foram realizadas entre agosto e dezembro de 2013. Hoje, os mesmos flanelinhas já não estão mais no local devido à ação da Gerência de Combate ao Crime Organizado (GCCO) da Polícia Civil. “Mudamos para a região em 2014 e, desde então, eles já não estão mais lá porque fizemos o cadastro, de pelo menos nove, e muitos praticavam tráfico de drogas”, afirma o delegado titular, Flávio Henrique Stringueta.
Apesar do interesse em regulamentar a atividade exposto por algum trabalhador para Juliano, a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego informou que não há nenhum pedido no órgão. A chefe de fiscalização, Maria Conceição de Melo, destaca que seria positiva a regulamentação para dar transparência à atividade e permitiria a identificação destes trabalhadores. “Infelizmente, muitos coagem o cidadão e cometem pequenos crimes. Se fossem regulamentados, teria um controle, o que seria muito bom”.
Há aproximadamente dois anos, a Polícia Civil tentou desencadear uma ação para cadastrar os flanelinhas que atuavam à época na Capital. O delegado Wagner Bassi explica que a ação foi difícil porque, mesmo que alguns fossem um pouco mais orientados, muitos não possuíam documentos e alguns moravam na rua.
“Foram cadastradas 50, mas há uma rotatividade entre eles, alguns mudam até de cidade, então, na hora de atualizar os dados era praticamente impossível, assim a ação foi abandonada”.
O delegado comenta que a atividade em si não é ilícita e que a polícia pode agir apenas em casos de agressão e de coerção para que o cidadão dê algum dinheiro para o flanelinha. Ele destaca que o ato de flanelar, em Cuiabá, é muito próximo à mendicância e cobra do poder público algum tipo de ação. “Não é a polícia quem tem que fazer alguma coisa, mas sim a assistência social porque é isto que eles necessitam”.
O estudo, para Juliano, ainda não foi finalizado e ele pretende levar o tema para o doutorado e assim entender o porquê as pessoas realizam o pagamento por serviços que não procuram. Por outro lado, para as autoridades, a questão já tem uma resposta. “As pessoas pagam simplesmente porque não querem ter seu veículo danificado, não há outro motivo”, afirma o delegado Stringueta.
Outro lado – Assessoria de comunicação da Prefeitura de Cuiabá informou que não possui o número de flanelinhas que atuam em Cuiabá e que a Secretaria de Assistência Social não tem nenhum projeto a ser desenvolvido.