Moro: “Nem eu sei aonde a Lava-Jato vai chegar”

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poucas horas antes da denúncia dos procuradores contra o ex-presi­dente Lula, um movimento atípico de agentes da Polícia Federal quebrou a rotina num dos terminais de embarque do Aeroporto Internacional de Guarulhos. No saguão, policiais tentavam agir com discrição para não chamar atenção sobre a autoridade que protegiam — um homem de estatura mediana, de calça jeans, camiseta preta, sapatênis, óculos escuros e boné vermelho. Não fossem os óculos, passaria despercebido. “O senhor é quem eu estou pensando?”, perguntou o empresário Michel Kupferman, quase sussurrando, procurando enxergar um pouco mais atrás dos óculos. “Se é, parabéns.” Era. O juiz Sergio Moro, com sua timidez pétrea, confirmou com um sorriso contido. Antes de se afastar, o empresário, ainda falando baixo, continuou: “Estou indo embora do Brasil, mas vejo que as coisas aqui estão começando a mudar, e o senhor é o responsável por isso”.

O voo para os Estados Unidos, onde o juiz proferiria uma palestra, demoraria um pouco a sair. Sob a vigilância dos policiais, Moro aguardava a chamada ainda incógnito, bebericando uma taça de vinho tinto chileno, até que outro passageiro se aproximou. “Dá orgulho ver que existem pessoas como você. Eu fico até emocionado”, disse o também empresário Marcelo Di Giorgio. Não era exagero retórico. Antes de tentar engatilhar uma conversa mais longa com o juiz, Di Giorgio chorou de verdade. Depois disso, uma das recepcionistas da companhia aérea também se aproximou. Pediu uma selfie. Ao se ajeitar para a foto, o juiz tirou os óculos escuros e o boné. O disfarce tinha ido por água abaixo.

Um grupo de passageiros pediu uma fotografia. Logo se formou uma pequena aglomeração. Fotos pra lá, pra cá, elogios, comentários, burburinho. O horário do voo já estava próximo. Moro colocou novamente o boné e seguiu a passos largos em direção ao portão de embarque. Foi acompanhado até a entrada do avião e, para voltar a ficar incógnito, embarcou antes dos demais passageiros. Seu assento, na classe econômica, foi reservado bem no fundo do avião. Um comissário de bordo se aproximou e ofereceu ao juiz um lugar mais confortável na classe executiva. Moro, gentilmente, declinou. Durante o voo, apesar da pouca luz e da aba do boné quase tocando o nariz para esconder o rosto, ele ainda foi reconhecido por outros passageiros enquanto alternava cochilos com a leitura de um livro sobre a vida de Marina Silva, ex-candidata à Presidência da República.

Em Miami, onde fez conexão para Filadélfia, uma passageira ensaiou uma salva de palmas, mas foi desestimulada por um senhor mais comedido: “Ele merece, mas a gente não pode fazer manifestação aqui”. Moro estava na fila da imigração quando foi chamado por um agente americano. Um brasileiro avisara a segurança do aeroporto de que na fila havia uma importante autoridade. Depois, o “delator” pediu desculpas a Moro: “Eles não podiam deixá-lo na fila. Eu disse que o senhor é um herói brasileiro, talvez o maior depois de Ayrton Senna”. Na sequência, mais selfies, poses, elogios. Depois de passar pela imigração, um homem indagou em voz alta: “Quando é que o senhor vai prender o Lula?”. Sergio Moro contraiu o semblante. É a pergunta que o juiz ouve a todo momento, em todo lugar — e que o incomoda.

Moro não é uma celebridade apenas no Brasil. O interesse internacional pelas investigações sobre o escândalo de corrupção na Petrobras alçou-o ao patamar de juízes como o espanhol Baltasar Garzón, que decretou a prisão do ditador Augusto Pinochet, e o italiano Giovanni Falcone, responsável pela Operação Mãos Limpas, assassinado pela máfia em 1992. Em Filadélfia, Moro era o convidado principal de um ciclo de palestras promovido pela escola de direito da Universidade da Pensilvânia. O tema: como produzir líderes com caráter e integridade e como incutir bons valores na vida pública. Só neste ano, foi a terceira palestra do juiz em universidades americanas. Os convites chegam às dezenas, de várias partes do mundo. Nos próximos meses, ele deverá ir à Alemanha e a Portugal.

Na palestra, de pouco mais de uma hora e em inglês, Sergio Moro defendeu as investigações da Lava-Jato, resumiu a história da operação (“Há um lado negro, por revelar tanta corrupção, mas também um lado luminoso, porque mostra que o Brasil está enfrentando seus problemas e quer se tornar um país melhor, menos corrupto”), falou da dificuldade histórica da Justiça brasileira em lidar com casos complexos que envolvam altas autoridades e lembrou os protestos de rua, que reuniram milhares de pessoas em dezenas de cidades do país, como uma importante manifestação de apoio popular à investigação.

E quando Lula será preso? A resposta para a pergunta que o juiz mais ouve nas ruas, em conversas com amigos, nas redes sociais (ele não está no Instagram, nem no Twitter, nem no Facebook, mas acompanha tudo atentamente) é sempre o silêncio. Nesse momento, ele se apega à liturgia de magistrado e se esforça para não deixar escapar nenhuma reação que possa indicar a resposta. Nem aos ataques do próprio Lula, que já disparou contra ele alguns petardos, Moro responde. O juiz costuma dizer que não há nada de pessoal em suas decisões nem na relação com seus investigados ou os réus que condena. Garante que não há nenhum ânimo contra Lula ou contra quem quer que seja.

O futuro de Lula, como nunca antes, está nas mãos de Moro. Nesta semana, o juiz decide se aceita ou não a denúncia do Ministério Público contra o ex-presidente. Se aceitar, inicia-se o processo. Um rápido exame sobre as sentenças proferidas pelo magistrado na Lava-Jato permite afirmar que o primeiro veredicto pode ser anunciado já no início de 2017. Sobre o fim da operação, ele estimava que seria neste ano. Mas agora já refaz as contas, uma vez que a cada nova frente de investigação surgem novos focos de corrupção. Resultado: é preciso abrir novos inquéritos, que resultam em novos processos, novas sentenças, novos réus e, quem sabe, novas delações premiadas — e novas revelações que têm necessariamente de ser investigadas. Para desespero dos arautos da “propinocracia”, muita coisa ainda está por acontecer.

Ao fim da palestra na Universidade da Pensilvânia, Moro ouviu mais de uma vez perguntas sobre a relação da Lava-Ja­to com a crise política no Brasil — das denúncias que envolvem o ex-presidente Lula ao impeachment de Dilma Rousseff. Escapou olimpicamente de todas elas. “Impeachment não é o meu negócio. Posso falar sobre a corrupção na Petrobras”, disse, ao ser indagado pela segunda vez sobre a mudança de governo. Na plateia, havia dezenas de brasileiros. Moro, como já é habitual, foi aplaudido de pé, no começo e no fim da apresentação. Na saída da universidade, ele foi abordado por VEJA. Travou-se o diálogo que se segue.

A Lava-Jato já prendeu alguns dos maiores empresários do país e alcançou dezenas de políticos dos mais importantes. O que ainda falta? Não tenho ideia. Nem eu sei aonde a Lava-Jato vai chegar.

Como o senhor enxerga a crítica de que a Lava-Jato tem atropelado direitos dos investigados? Somos muito zelosos com o devido processo legal. A gente segue a lei e outros seguem a política.

Que outros? Aí fica para sua interpretação.

Dias atrás, o ex-advogado-geral da União disse que o atual governo quer abafar a Lava-Jato. A exemplo do que ocorreu na Operação Mãos Limpas, na Itália, o senhor vê a política operando para limitar as investigações? Não vejo nenhum movimento do atual governo no sentido de abafar as investigações.

Vou repetir a pergunta que o senhor mais ouve na rua: o ex-presidente Lula será preso?Sem comentários.

Moro pretendia aproveitar a viagem a Filadélfia para visitar os famosos degraus de pedra do Museu de Arte da cidade, celebrizados por Sylvester Stallone nos filmes em que interpreta Rocky Balboa, e ainda percorrer alguns dos pontos turísticos de uma conhecida rota cívica dos Estados Unidos, que inclui o prédio onde a Constituição do país foi promulgada e o Sino da Liberdade, ícone da independência americana. No roteiro de passeios imperdíveis na cidade, consta ainda uma das mais antigas prisões dos Estados Unidos, cuja cela mais famosa recebeu um dia o lendário Al Capone — o mafioso que a polícia sempre quis capturar e a Justiça sempre quis condenar, mas só conseguiram quando flagraram uma prosaica sonegação fiscal. Há meios e meios de fazer justiça.

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