Supondo que a humanidade não destrua a si própria, colonizar outros planetas pode ser a nossa última esperança de sobrevivência. A maior parte dos preparativos para essa expansão cósmica gira em torno das dificuldades práticas de transportar nossos corpos para o espaço. Mas e a nossa cultura, onde fica? É aí que reside um problema que nunca recebe muita atenção: as principais religiões monoteístas do mundo serão capazes de conciliar a exploração do espaço e a salvação de nossas almas imortais?
Essa é, na verdade, uma questão debatida há centenas de anos por cientistas e teólogos;como David Weintraub escreve em seu livro recente sobre o tema, Religions and Extraterrestrial Life, o cientista David Rittenhouse afirmou em 1775 que “a doutrina da pluralidade de mundos não pode ser separada dos princípios da astronomia, mas essa doutrina ainda é vista por alguns fiéis… como uma afronta às verdades proferidas pela religião cristã.”
Essa desconfiança não desapareceu no século XVIII. De acordo com um recente estudosobre a relação entre religião e espaço, grupos como os evangélicos – que representam um quarto da população americana – hesitam em apoiar programas de exploração espacial. Para alguns grupos religiosos, o próprio conceito de viagem espacial — isso sem nem falar na colonização de formas de vida alienígenas — vai contra suas crenças mais básicas.
As questões são infindáveis: existe uma tensão inerente entre nossa ambição espacial e os princípios religiosos terrenos? Como o Islã lidaria com o fato de não ter mais um local central para onde direcionar suas preces? Será que os fundamentalistas tentariam converter os ETs?
Uma combinação de avanços tecnológicos e porta-vozes da inovação como Elon Musktorna essas questões mais urgentes do que nunca. Como escrito no estudo: “Para garantir sua sobrevivência, as religiões terão de aceitar o espaço.”
Então como as três maiores religiões monoteístas (o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo) lidariam com essas descobertas cósmicas? Bom, a resposta é complicada.
Por mais absurdo que pareça, a viagem espacial e a religião andam juntas desde que o homem saiu da Terra. Na véspera de Natal de 1968, os primeiros humanos a orbitar a Lua leram uma passagem do Livro de Gênesis, transmitindo a mensagem para todas as famílias que ouviam, atentamente, com os ouvidos grudados em seus rádios.
Esse diálogo ainda existe, mesmo em nosso atual programa espacial. Como descrito na The Atlantic:
, rezemos em nome do Senhor”. Mas só porque a maioria das religiões está disposta a aceitar essas curtas viagens ao espaço — e que escolha elas têm? — isso não significa que elas estão prontas para aceitar o próximo passo nessa jornada galáctica.
Cristianismo
No final do século XIX, a Igreja Católica autorizou um padre jesuíta francês e cientista chamado Abbé Moigno a decidir se uma “doutrina da pluralidade dos mundos” poderia coexistir com “a verdade e a moral católica”. Segundo Weintraub, Moigno acabou concluindo que a ideia de vários planetas, alguns dos quais potencialmente habitados, “não ia contra, de forma alguma, as doutrinas da Criação, da Encarnação e da Redenção pregadas pela Igreja Católica”. Portanto, a Igreja Católica não tem objeções contra as colônias espaciais.
Apesar das constatações de Moigno, alguns cristãos modernos (em especial fundamentalistas) se sentem extremamente incomodados com as viagens espaciais. Na verdade, eles acreditam que a Bíblia proíbe essas missões explicitamente. Por exemplo, Ken Ham, um “criacionista da Terra Jovem” e presidente do notório Museu da Criação em Kentucky, acredita que a mera existência de outros planetas habitáveis é uma ideia absurda:
Felizmente, Ham representa uma vertente que acredita em interpretações extremas. Em geral, o Cristianismo não tem muitos problemas com a colonização espacial. E outros grupos religiosos são ainda mais compreensivos.
Judaísmo
Em geral, toda vertente do Judaísmo (reformista, conservador, ortodoxo, etc) tem opiniões vagas sobre a maior parte das coisas. As discussões sobre o significado das escrituras são encorajadas; afinal, as possibilidades de interpretação são enormes. É por isso que, em 1340 d.C., o rabino Hasdai Crescas não exitou em afirmar que sim, o espaço é infinito e portanto pode conter infinitos mundos — o que significaria que colonizar outro planeta seria algo totalmente aceitável. Os rabinos e estudiosos passaram os séculos seguintes discutindo essa questão, sem nunca chegar a lugar algum.
O Judaísmo também tem alguns problemas práticos com o espaço. Em 2003, o astronauta israelense Coronel Ilan Ramon viajou para a Estação Espacial Internacional (ISS) no infeliz ônibus espacial Columbia, que se desintegrou durante sua volta à órbita terrestre. No espaço, Ramon se deparou com a dificuldade de observar o Shabat. Os judeus da Terra descansam do pôr do sol da sexta-feira ao pôr do sol de sábado; no entanto, é um pouco complicado calcular esse período quando sua estação espacial passa por um amanhecer a cada 90 minutos.
No fim, os rabinos na Terra decidiram que Ramon poderia continuar seguindo o horário do Cabo Canaveral, local de lançamento de sua espaçonave. E como a maior parte dos rituais praticados durante o Shabat seria impraticável em uma nave espacial (como acender velas, por exemplo, por causa do risco de explosão), foi decidido que, nesse caso, recitar a oração adequada sobre o vinho cerimonial já seria o suficiente. O fato dos líderes religiosos estarem dispostos — e aptos — a adaptar regras essenciais a circunstâncias extraordinárias indica um futuro próspero para os exploradores espaciais judeus.
Islamismo
Os muçulmanos provavelmente estariam preparados para a existência de outros planetas. Na verdade, o Alcorão parece fazer referência ao fato de que a Terra não está sozinha no firmamento. O livro sagrada do Islã contêm passagens como: “Louvado seja Deus, o Clemente e Misericordioso Senhor dos mundos” (Alcorão 1:2) e “Ele é o Senhor de todos os mundos” (Alcorão 41:09).
Nós também temos alguns indícios de como os muçulmanos poderiam se adaptar às restrições dessas jornadas estelares. Em 2007, o astronauta Sheikh Muszaphar Shukor teve que inventar uma forma de se voltar à Meca durante as cinco orações diárias, pois, como diz a The Atlantic, “a nave se move a 27.000 km/h e a região abaixo dela muda a cada minuto; às vezes a nave faz um giro de 180 graus durante uma única oração”.
Após conversar com alguns imames (sacerdotes muçulmanos), Shukor foi instruído a simplesmente fazer o melhor que ele podia. Você pode conferir seus esforços no vídeo acima. A oração é um pouco estranha e não segue a tradição, mas nesse caso, o que conta é a intenção. Esse sentimento foi enfatizado no seguinte documento, utilizado por Shukor como um guia espiritual:
Colonizar um planeta é a parte fácil. Uma vez que aceitamos a ideia de que a Terra pode não ser o único lugar habitável do universo, temos que começar a considerar a ideia de que esses outros planetas podem abrigar outras criaturas. Afinal, se nós não somos a obra mais especial de Deus, quem somos nós?
Cristianismo
Não é de se supreender que os fundamentalistas cristãos repudiem a ideia de vida extraterrestre; afinal, isso vai diretamente contra a doutrina bíblica. Nas palavras de Ken Ham, o diretor do Museu da Criação:
Em outras palavras, a Bíblia fala que Deus criou os céus e a Terra — e só. Como bons literalistas, os fundamentalistas não estão interessados em analisar as entrelinhas da Bíblia. Se ela não menciona explicitamente a vida alienígena em outros planetas, o assunto está encerrado.
Apesar disso, nem todas as vertentes do Cristianismo são radicalmente opostas à ideia de vida fora da Terra. Por exemplo, o padre argentino José Gabriel Funes, atual diretor do Observatório do Vaticano, já disse que “quando não acreditamos na existência de aliens, estamos impondo limites à criatividade divina”. É assim que a maioria dos grupos cristãos lida com a questão da vida fora da Terra.
A pergunta mais importante para os cristãos é, na verdade, se os ETs deveriam — ou não — ser catequizados. A resposta, pelo menos na opinião dos católicos e do Vaticano, é basicamente “e por que não?” Em outra entrevista, o Padre Funes afirmou que a existência de vida alienígena inteligente é possível e que a mesma não entraria em conflito com a doutrina católica:
O próprio Papa Francisco chegou ao ponto de dizer que, caso algum alien batesse nas portas divinas do Vaticano, ele ficaria mais do que feliz em batizá-lo. Ele chegou ao ponto de especificar a espécie desse alien cristão:
No entanto, os protestantes não parecem se empolgar muito com a ideia de um missionário marciano. Como narra Weintraub, o teólogo reformista alemão Jurgen Moltmann escreveu que “Nós não deveríamos converter todos em luteranos ou batistas, ou espalhar congregações católicas por onde formos…
um efeito negativo no apoio à exploração espacial, o apoio do clero exerce um efeito positivo”. Quer gostemos ou não, as pessoas se espelham em seus líderes religiosos em todos os aspectos de suas vidas — não apenas na fé. E as descobertas científicas precisam de todo o apoio possível.
Além dos benefícios a longo prazo – como abrir as mentes das pessoas para o potencial das viagens espaciais -, Weintraub espera que a discussão traga bons frutos aqui na Terra: “Depois de pensar um pouco, é fácil perceber que, se alguém em outra parte do universo pode ter outra religião, talvez seja justo que outra pessoa em outra parte da Terra também tenha uma religião diferente. Quem sabe não descobrimos alguma coisa que nos faça conviver um pouco melhor”. A paz é sempre uma boa ideia — seja você cristão, judeu, muçulmano ou marciano.
Ilustração por Jim Cooke