“Diante da adiantada hora, eu tenho um compromisso médico agora aqui no posto, como avisei à vossa excelência (…) eu vou pedir vista do processo”. Assim o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli anunciou, no plenário da corte, que iria pedir vista no processo cujo julgamento pode definir a extensão do foro privilegiado a parlamentares.
Já há maioria para a restrição do privilégio, com resultado parcial de 8 a 0, mas com o pedido de vista desta quinta-feira, fica indefinido o prazo para resolução do caso na corte.
A proposta limita o acesso de deputados e senadores ao Supremo apenas aos casos ocorridos no exercício do mandato e ligados à função. Os crimes comuns passariam a ser investigados e processados pelas instâncias inferiores.
Pedidos de vista como o de Toffoli já somaram pouco mais de 370 no STF desde 2001, segundo dados da própria corte. Destes, 240 ainda não foram devolvidos à pauta pelos ministros.
No julgamento de quinta-feira, Toffolli alegou a necessidade de sanar dúvidas e conversar com colegas sobre o tema após quase uma hora de exposição oral. Mas, na opinião de Ivar Hartmann, professor da FGV Direito Rio e coordenador do projeto Supremo em Números, o que costuma ser apresentado pelos ministros como uma necessidade de estudo diante de um caso desafiador é usado, na prática, como um “poder de veto unilateral”.
Para Hartmann, o pedido de vista é uma “carta na manga” dos ministros para interromper um julgamento por motivos diversos – como a avaliação, individual ou compartilhada, de que o contexto político ou a composição dos votantes não é favorável.
“[O pedido de vista] Nunca foi previsto na Constituinte ou pelo legislador. Também não conheço nada do tipo em outros países. Além disso, um tribunal com funcionamento adequado nunca tem um processo pautado para a semana ou o mês seguinte, como acontece no Brasil, e é usado como justificativa pelos ministros para interromper o julgamento para estudar o processo”, diz Hartmann.
“Mesmo que haja um acúmulo de milhares ações esperando julgamento no STF, a pauta também poderia ser antecipada no início do ano aqui. E ainda que isso não aconteça, cada ministro tem um gabinete com 40 pessoas”, sugere o estudioso, para quem acompanhar o relator ou até mesmo faltar uma sessão podem ser alternativas melhores à interrupção de um julgamento.
“Pedir vista é o pior dos mundos: envolve um exercício de poder em casos que não deveriam ser decididos unilateralmente”, completa, caracterizando o discurso “oficial” da dedicação ao caso como “muito útil”.
‘Perdidos de vista’
A crítica ao uso recorrente do mecanismo já veio do próprio tribunal: em entrevista ao jornal O Globo em 2015, o ministro Marco Aurélio Mello apontou para o risco dos pedidos de vista se tornarem “perdidos de vista”.
“Pedir vista é ruim, porque se perdem na memória as sustentações da tribuna e os votos dos outros ministros. Se não houver conscientização, o pedido de vista vira ‘perdido de vista’ e vai para as calendas gregas”, afirmou Mello ao jornal. O regimento do STF estabelece prazo de duas sessões para que os “perdidos de vista” sejam devolvidos. Como não há qualquer sanção, porém, a prática é não devolver.
E, mesmo que sejam devolvidos, isto não garante que o processo será logo colocado na pauta de julgamento – decisão que cabe ao presidente do STF.
Foi Mello também quem, nesta sexta-feira, afirmou que o pedido de vista do colega Dias Toffoli sobre o foro privilegiado foi feito para esperar a tramitação de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sobre o tema no Congresso.
Em paralelo ao julgamento do STF, está em discussão na Câmara um projeto ainda mais amplo, que extinguiria a prerrogativa de foro para praticamente todos aqueles que hoje são beneficiados, entre políticos e membros do Judiciário.
O privilégio seria mantido apenas para o presidente da República, seu vice e os presidentes da Câmara, do Senado e do STF
Para Mello, a matéria em debate no Legislativo estava “madura” e já poderia ter tido julgamento concluído.
Na véspera da sessão no STF, informações de bastidores e especulações já indicavam que os ministros do Supremo deixariam para os parlamentares a decisão sobre o foro.
Agora, com a interrupção do caso no STF, é possível que o Congresso tenha tempo para concluir a votação sobre o foro privilegiado.
Segundo o relator do projeto na Câmara, Efraim Filho (DEM-PB), o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ) está disposto a levar o tema adiante. “Minha conversa com o Rodrigo (Maia) foi muito rápida. Ele acompanhou o resultado do foro, da unanimidade (na CCJ da Casa). Ele sabe que é uma pauta positiva para o país e para a Câmara dos Deputados”, disse Efraim à BBC Brasil.
“A minha expectativa é de que a instalação da comissão especial possa ocorrer ainda agora em 2017 para que dê tempo, para que se aproveite inclusive o recesso para preparar um texto (…) que vá ao plenário ainda no 1º semestre”, completa o deputado.
Quem mais pede vista?
Na soma de pedidos de vista feitos no plenário desde 2011, tanto na primeira como na segunda turma do STF , é Toffoli quem lidera dentre os ministros atuais, com 59 pedidos.
Em seguida, vêm: Alexandre de Moraes (56); Gilmar Mendes (45); Luís Roberto Barroso (40); Cármen Lúcia (25); Luiz Fux (21). No final da lista estão Rosa Weber (15); Edson Fachin (10); Marco Aurélio Mello (8) e Ricardo Lewandowski (6). Celso de Mello não registra nenhum pedido de vista.
A reportagem calculou também a relação entre os pedidos de vista feitos e os devolvidos (não necessariamente no prazo de duas sessões). Só dois ministros devolveram todos os seus pedidos: Marco Aurélio Mello e Edson Fachin. Eles são seguidos por: Cármen Lúcia (72% devolvidos); Rosa Weber (66%); Toffoli (58%); Ricardo Lewandowski (50%); Alexandre de Moraes (32%); Gilmar Mendes (24%); Luiz Fux (19%); e Luís Roberto Barroso (10%).
Dentre os pedidos “trancados” eternamente por pedidos de vista, há um acervo de 56 processos envolvendo a demarcação de terras indígenas em Roraima. As ações foram relatadas pelo ministro Marco Aurélio, e o ex-ministro Ayres Britto pediu vista de todos os casos no mesmo dia, 3 de junho de 2009. Hoje, os processos dos quais Ayres Britto pediu vista são de responsabilidade de Luís Roberto Barroso, que o sucedeu na cadeira.
Outro caso emblemático é a ação que contestava o financiamento empresarial de campanhas eleitorais – doações essas que, por decisão da corte em 2015, foram proibidas. Mas, até ali, a ação foi interrompida duas vezes por pedidos de vista. Na última, o ministro Gilmar Mendes pediu vista quando já havia maioria para definir a inconstitucionalidade das doações e demorou um ano e cinco meses para devolvê-la à pauta.
Cinco casos importantes
A BBC Brasil relembra cinco casos emblemáticos de julgamentos interrompidos por pedidos de vista – em que tanto a demora quanto um eventual julgamento significam impactos importantes em suas respectivas áreas.
1. Descriminalização do porte de maconha
O caso chegou ao STF em 2011, e até agora só três ministros votaram. A origem é um recurso relativo ao caso de Francisco Benedito de Souza, hoje com 57 anos. Ele foi pego com 3 gramas de maconha em uma cela no Centro de Detenção Provisória (CDP) de São Paulo.
O primeiro a votar foi o relator do caso, Gilmar Mendes. Ele defendeu a descriminalização de todas as drogas, não só a maconha, em agosto de 2015.
Além de Gilmar, só votaram até agora os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Os dois últimos foram favoráveis à descriminalização apenas da maconha.
O último pedido de vista foi de Teori Zavascki, que interrompeu o julgamento em setembro de 2015. Agora, cabe ao ministro Alexandre de Moraes (que herdou a cadeira de Zavascki) devolver o processo à pauta.
O STF reconheceu que o caso tem “repercussão geral”. Isto é, criará regra para todos os processos similares. Se o processo for vitorioso, a posse de maconha para uso próprio não será mais considerada crime, como ocorre hoje, embora a ofensa não seja mais punida com cadeia.
“A criminalização é inconstitucional. A falta de celeridade dessa decisão causa sofrimento para milhares de pessoas. Inclusive famílias que usam maconha de forma terapêutica”, diz o cientista político Gabriel Santos Elias, coordenador da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.
2. Mudança de nome para transexuais
Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e um recurso contra a decisão da Justiça do Rio Grande do Sul serão julgados juntos. Se a maioria dos ministros concordar, os transexuais poderão alterar o próprio nome no registro civil (RG), mesmo sem realizar a cirurgia de transgenitalização (mudança de sexo). A ADI foi proposta em 2009, e o recurso é de 2012.
O caso começou a ser julgado pelo STF em abril deste ano, mas apenas o relator, Dias Toffoli, falou.
A discussão voltou ao plenário na última quarta-feira. Além de Toffoli, foram favoráveis à ação os ministros Alexandre de Morais, Edson Fachin, Roberto Barroso e Rosa Weber.
O ministro Marco Aurélio interrompeu o julgamento com um pedido de vista, já que não havia quórum para concluir a votação.
3. Doação de sangue por gays
É inconstitucional impedir homens homossexuais de doarem sangue? É isso que o STF terá de decidir. A ação foi proposta pelo PSB, em junho passado.
A ação questiona normas do Ministério da Saúde que impede pessoas que tiveram relações homossexuais nos últimos 12 meses de doar sangue. Ou seja: proíbe, na prática, que estas pessoas doem.
O assunto chegou ao plenário, mas foi alvo de um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, em 26 de outubro.
4. Financiamento público de remédios
De um lado, a urgência de vida de pacientes com doenças raras por remédios caros e muitas vezes novos – por isso, ainda não avaliados e autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Do outro, os altos e imprevisíveis custos que recaem sobre os estados e a União diante de decisões judiciais que os obrigam a fornecer medicamentos não avalizados pelas autoridades.
O delicado equilíbrio sobre a obrigatoriedade ou não do Estado de fornecer tratamentos não previstos no Sistema Único de Saúde (SUS) e na Anvisa entrou na pauta do plenário em 2016.
Mas foi interrompido por dois pedidos de vista. Já se vai um ano de julgamento parado.
Segundo afirmou em setembro à BBC Brasil, Sérgio Sampaio, presidente da Associação Brasileira de Assistência à Mucoviscidose (ABRAM), ao mesmo tempo em que a decisão final do STF pode representar uma “eugenia” caso os estados sejam desobrigados a fornecer tais medicamentos, a demora do julgamento também tem sido prejudicial.
Isto porque as instâncias inferiores acabam esperando pela definição do supremo. Segundo dados coletados pelo Tribunal de Contas da União (TCU), há pelo menos 22,9 mil processos paralisados à espera da decisão no STF.
5. Validade do novo Código Florestal
Demorou quatro anos para que cinco ações que questionam o novo Código Florestal – aprovado no Congresso e sancionado pela presidência em 2012 – começassem a ser julgadas no plenário do STF.
No início deste mês, porém, a deliberação foi interrompida por um pedido de vista pela presidente do Supremo, a ministra Cármen Lucia.
O relator da matéria, Luiz Fux, votou pela inconstitucionalidade de diversos artigos do código – entre eles aquele que é talvez o mais polêmico, conhecido como “anistia” àqueles que desmataram em desacordo com a legislação vigente até 2008, condicionada a algumas reparações.