País é um dos poucos da América Latina que ainda redistribui terras para os indígenas
CAROLINE STAUFFER
DA REUTERS, EM MARÃIWATSÉDÉ- Midia News
Damião Paridzané tinha 9 anos de idade, em 1966, quando ele e centenas de outros índios xavantes foram colocados dentro de um avião de carga da FAB (Força Aérea Brasileira).
O governo, ávido por uma fatia de terra fértil na região central do país para a agricultura comercial, levou os índios para uma nova reserva a 400 quilômetros de distância. Paridzané lembra que muitos amigos morreram de sarampo, enquanto outros entraram em confronto com tribos rivais que foram forçadas a compartilhar a mesma área.
Quase meio século após a expulsão, os xavantes estão de volta, e Paridzané usa com orgulho seu cocar colorido. Nestes dias, é o “homem branco” que está sendo forçado a sair. Enquanto o governo da presidente Dilma Rousseff tenta corrigir os erros do passado, foram expulsos cerca de 7.000 agricultores e outros colonos, e suas lavouras foram transformadas em reserva para que os xavantes pudessem voltar para casa.
“Aqui é território tradicional”, disse Paridzané. “Não tem nada a ver com brancos, fazendeiros, empresários de fora do Brasil. Aqui o território é dos xavantes.”
Mas esta não é uma história feliz para sempre. Surgiram confrontos violentos. Os agricultores têm contestado as expulsões no STF (Supremo Tribunal Federal). A cidade deixada para trás pelos colonos está em ruínas.
O conflito destaca os riscos enfrentados pelo país, uma potência agrícola. O governo tenta resolver séculos de disputas étnicas envolvendo a propriedade de terras de onde brota grande parte da riqueza do país.
Mais de 100 anos depois que os Estados Unidos terminaram de delimitar suas reservas indígenas, o Brasil é um dos poucos países da América Latina, incluindo Colômbia e Panamá, que ainda está redistribuindo terras. Mas o governo conseguiu ir um pouco mais longe, retirando não-índios de terras indígenas.
A quantidade de terra no caso dos xavantes “é relativamente pequena”, aproximadamente do tamanho de Londres. E o Brasil geralmente tem um bom histórico de proteger os direitos de propriedade dos moradores locais e estrangeiros.
O governo ofereceu reassentar alguns agricultores, mas não todos. No entanto, o setor do agronegócio teme que a conservação de terras indígenas poderia gerar mais controvérsia, já que agricultores e mineiros avançam na floresta amazônica, onde algumas tribos nunca tiveram contato com o mundo exterior.
Governos da América Latina têm se esforçado para equilibrar a necessidade de desenvolvimento econômico com os direitos de uma comunidade indígena que representa cerca de 10 por cento da população da região.
Nos últimos anos, essa comunidade cresceu, ganhando força política. Em 2009, o governo brasileiro retirou produtores de arroz e pecuaristas de Raposa Serra do Sol, uma área 10 vezes maior do que a reserva xavante, de 1,68 milhão de hectares, perto da fronteira com a Venezuela.
Confrontos sobre direitos da terra no Peru deixaram mais de 100 mortos nos últimos anos. Protestos indígenas adiaram planos de exploração de minas e estradas no Equador e na Bolívia. No Brasil, protestos atrasaram a construção de um dos projetos preferidos de Dilma, o enorme complexo hidrelétrico de Belo Monte, e chamaram a atenção de celebridades como o diretor de “Avatar”, James Cameron.
Alguns veem o fechamento de um ciclo, com a tribo xavante e sua terra voltando para um estado mais primitivo. Seth Garfield, professor da Universidade do Texas em Austin, que escreveu um livro sobre os xavantes, disse que a tribo era uma das poucas na região que não teve contato com os europeus antes de sua expulsão, tornando a situação particularmente cruel.
“É um fim fascinante”, disse Garfield.
O acerto histórico de contas, advertem agricultores, vai ter um custo para o setor no país, um dos principais exportadores agrícolas do mundo.
O diretor-regional da cooperativa de soja Aprosoja, Gilmar Delosbel, disse que a incerteza criada pelas disputas de terras poderia fazer os agricultores pensarem duas vezes antes de avançarem para novas terras. Isso poderia, por sua vez, afetar a meta do Brasil de passar os Estados Unidos e se tornar o maior produtor mundial de soja.
“A terra que está produzindo, tem que deixar produzir alimentos, gerar riquezas pelo país”, disse Delosbel.
Balas de borracha e gás lacrimogêneo
A quantidade de terra em jogo em Marãiwatsédé, um trecho de cerrado perto da Amazônia e a cerca de 375 quilômetros a noroeste de Brasília, é de quase 165.000 hectares. Mas os acontecimentos dos últimos seis meses foram dramáticos o suficiente para chamar a atenção de todo o país.
A pedido dos xavantes, o governo derrubou muitas das casas, silos de grãos, escolas e outros rastros deixados por agricultores que ocuparam a área nos últimos 50 anos.
Índios usam rifles para caçar o gado deixado pelos fazendeiros em busca de carne. Cães abandonados vagam em meio aos destroços de madeira e metal de construções, e urubus famintos avidamente se aproximam de animais mortos.
Uma placa escrito a mão anuncia o novo nome que os índios xavantes deram à única cidade da região é Mõõnipa, substituindo o nome em português: Posto da Mata.
Onde funcionava um posto de gasolina, quatro policiais estão a postos contra qualquer nova agressão pelos agricultores expulsos, alguns dos quais pegaram em armas para tentar obter sua velha terra de volta. Um vídeo recente da polícia mostra tropas federais disparando balas de borracha e gás lacrimogêneo contra cerca de 50 fazendeiros que estavam tentando impedir a remoção de pessoas de suas casas.
O espetáculo de fazendas outrora prósperas sendo reduzidas a escombros horrorizou o setor do agronegócio e seus poderosos aliados em Brasília, que temem que um novo precedente esteja sendo definido para a disputa de terras em outros lugares. Mas o esforço para reverter parcialmente as apreensões de terras indígenas tem sido tomado há décadas.
A Constituição, de 1988, consagrou o direito dos índios às “terras tradicionalmente ocupadas” e definiu que o Estado é responsável por “demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Os governos vêm aplicando a lei que destina 13 por cento do território brasileiro a 0,4 por cento da população considerada indígena. Por outro lado, apenas 2,3 por cento das terras no continente dos Estados Unidos são reservadas aos índios, que representam 0,9 por cento da população.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) começou a montar uma proposta para uma nova reserva para os índios xavantes em 1992, e seu plano foi aprovado em 1998.
O agronegócio, que tem na senadora Kátia Abreu (PSD-TO) uma de suas vozes influentes, tentou impedir a retirada dos produtores ao questionar os limites do território indígena. Mas o STF negou a apelação final em outubro e a Funai deu prazo de 30 dias a todos os “intrusos” não-índios para desocupar o local. A polícia e o Exército, em seguida, foram para a região antes do fim do ano.
O pecuarista Antonio Luiz Pereira e sua jovem família estão agora desenraizados e sem-teto, um pouco como a situação de Paridzané há cinco décadas.
Pereira, sua mulher e seus três filhos agora passam suas noites em um ginásio escolar sufocante a cerca de 40 quilômetros de sua antiga casa. Seus pertences estão em caixas no chão, juntando bolor.
“Tínhamos uma boa casa e uma vida boa lá, e nós perdemos tudo”, disse Pereira, balançando a cabeça.
Agricultores mais ricos, em sua maioria, se refugiaram em cidades maiores para se reagrupar, sem qualquer compensação monetária. Mas cerca de 270 famílias, incluindo a de Pereira, estão em compasso de espera, depois de fazerem registro com o governo e inscrição para reassentamento. Destas, 105, principalmente famílias de renda mais baixa, estão sendo levadas para pequenos lotes de terra nas proximidades.
Os Pereira e outras famílias receberam ofertas de terra a três horas de distância, mas dizem que é muito seca e arenosa para a criação de gado ou plantações, e estão à espera de uma oferta melhor. Outros têm se mobilizado, criando bloqueios esporádicos em protestos que levaram à escassez de combustível e comida em cidades do norte. Uma multidão queimou um caminhão que se dirigia para a aldeia do cacique Paridzané com medicamentos e suprimentos.
Confusão jurídica
Agora está sendo debatido se os antigos produtores tinham contrato de propriedade. O coordenador do escritório regional da Funai, Paulo Roberto de Azevedo Junior, diz que os agricultores sabiam que estavam invadindo território indígena e que os documentos de propriedade alegando o contrário são falsos.
Mas a família Pereira conta que não tinha nenhuma razão para duvidar de uma certidão de proprietários de imóveis, que mostraram a um repórter, que indica que compraram a fazenda por cerca de 100.000 dólares em 2005. Embora os limites da reserva indígena tenham sido aprovados em 1998, os agricultores dizem que não entenderam que isso implicaria a sua saída.
A senadora Kátia Abreu, que também é presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), diz que o verdadeiro culpado é a ausência de “regras claras”.
O problema, segundo grupos de agricultores, é que a Funai está expulsando as pessoas de áreas onde autoridades do governo local incentivaram a colonização em um período tão recentemente quanto nos anos 1990.
Eles também dizem que a Funai e outros órgãos têm sido muito agressivos quando decidiram o que constitui uma terra ancestral. As questões se tornaram mais difíceis pela natureza nômade de muitas tribos e da geografia hostil da Amazônia, o que torna mais difícil o mapeamento e a definição de limites.
“A Funai só quer continuar fazendo mais reservas em áreas indígenas que não são reivindicadas”, disse Delosbel, diretor regional da cooperativa de soja. “Obviamente, nós queremos que eles vivam bem… mas o suficiente é o suficiente.”
O cacique, que prometeu a seu pai e seu avô que iria recuperar a sua terra, disse que as mudanças são irreversíveis. Ele afirma que vai recusar pedidos por parte dos agricultores para arrendar de volta a terra antiga deles, ou quaisquer tentativas do governo de pavimentar uma estrada que poderia reduzir o tempo que os agricultores da área levam para transportar sua produção aos portos do Nordeste.
“Não vamos conversar. Não pode haver fazendeiros correndo atrás de cacique… acabou a discussão”, declarou ele antes de uma assembleia de índios xavantes, em que abaixaram suas cabeças, em sinal de respeito, enquanto ele falava.
‘Uma batalha perdida’
Os xavantes têm ideias radicalmente diferentes sobre agricultura e desenvolvimento. Eles querem que a área se torne novamente digna do nome Marãiwatsédé, uma palavra xavante para “mata fechada, perigosa”. Isso significa deixar as odiadas fazendas de soja e gado crescer em pousio, na esperança de que as árvores brotem.
Ainda assim, nem todas as armadilhas da modernidade serão sacrificadas – é muito tarde para isso.
Enquanto os xavantes ainda vestem roupas cerimoniais e se pintam para as celebrações, a maioria usa shorts e camisetas na maior parte do tempo. As crianças pedem refrigerante aos visitantes. A aldeia principal tem uma igreja católica e uma escola com aulas de língua xavante, assim como de português, o que, segundo o cacique Paridzané, é importante que as crianças aprendam.
Grupos sem fins lucrativos ajudaram a construir cabanas, e a tribo vai continuar dependendo do governo para a segurança.
A Funai está tentando encorajar a tribo a se tornar economicamente autossuficiente, em parte, pela produção de milho orgânico e soja que poderiam ser comercializados sob uma marca Marãiwatsédé. O órgão também planeja trazer mais 4.000 xavantes de outras reservas para tornar o assentamento viável, e espera, eventualmente, suspender a doação de comida básica.
“Antigamente, demos grandes quantidades de cestas básicas, agora não, eles não podem ficar dependentes, esta situação é paternalista”, disse Azevedo Junior.
Os agricultores temem que o fim da briga não tenha sido sacramentada em Marãiwatsédé. Sua mais recente preocupação: a reserva abriga o fungo da ferrugem asiática, uma doença terrível que danifica as folhas e rapidamente mata as plantas de soja. A Aprosoja diz que alguns dos 3.000 hectares de plantações de soja agora abandonados estão infestados com o fungo, ameaçando 341.000 hectares em fazendas nos arredores.
“Tiraram milhares de pessoas (de) lá (de) onde se plantava, a gente tem uma preocupação com a parte sanitária”, disse Eduardo Godoi, um gestor da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso (Famato). “Marãiwatsédé é uma batalha perdida.”