Muricy Ramalho se declara ao futebol: ‘Eu te amo’

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Esqueça a fisionomia sisuda, a postura séria e as palavras firmes, às vezes ríspidas. Para consumo externo, Muricy Ramalho pode até passar tais características, mas no fundo o treinador do Fluminense não passa de um romântico. Apaixonado pelo…futebol. Se hoje o trabalho duro é o que norteia o caminho do vencedor de quatro dos últimos cinco Brasileirões, o encantamento pelo esporte que conheceu “descalço e com pés cortados” nas ruas de Pinheiros, em São Paulo, é o responsável por uma história de quase 40 anos de profissionalismo.

Muricy Ramalho FluminenseMuricy Ramalho chuta bola em treinamento em Mangaratiba (Foto: Alexandre Durão / Globoesporte.com)

Muricy Ramalho é daqueles que fazem do futebol não somente trabalho, mas também lazer. Ao ponto de tomar quase as 24 horas do seu dia. Se os contratos milionários são normais em uma profissão que mistura esporte e negócio, o prazer é que explica os momentos em frente à TV para assistir a partidas de divisões intermediárias. Prazer, não. Amor. Tanto que se o futebol fosse uma pessoa ele teria na ponta da língua o que dizer:

– Eu te amo, né? O futebol é o amor da gente. Primeiro vem minha esposa, meus filhos, e depois o futebol. Se fosse uma pessoa, eu falaria te amo. É a minha vida. É o que mais gosto de fazer.

O futebol é o amor da gente. Primeiro vem minha esposa, meus filhos, e depois o futebol. Se fosse uma pessoa, eu falaria te amo. É a minha vida. É o que mais gosto de fazer."
Muricy Ramalho, técnico do Fluminense

Torcedor, jogador, treinador. Desde sempre o futebol esteve presente em sua vida. Filho de palmeirense, cresceu recebendo visitas de luxo, como de Ademir da Guia, em sua casa. Mas foi no Morumbi que a curiosidade se transformou em amor. Sócio do São Paulo, o jovem Muricy costumava escalar os morros da sede social para ver o que acontecia durante os clássicos no Cícero Pompeu de Toledo. Quis o destino que do outro lado enxergasse ninguém menos que o maior de todos.

– Eu gostava de ver o Pelé jogar. O Santos ia jogar e eu ficava enlouquecido. Via tudo do morro, não entrava no estádio. Então via o Pelé, o Rivelino…

A descoberta de que aquele esporte de onze para cada lado correndo atrás de uma bola era o que queria fazer para o resto da vida aconteceu cedo: aos nove anos, quando entrou para a escolinha do Tricolor Paulista. De lá até a estreia entre os profissionais, em amistoso contra o Peñarol, foram sete anos e uma polêmica com o técnico argentino José Poy.

– Eu tinha cabelo muito grande, vinha nas costas, e ele mandava eu cortar, achava que não podia jogar assim. Eu respondia: “Não vou cortar, não, meu”. Ele dizia: “Então, você não vai treinar”. E eu ia embora. Mas, aí, ele me deu uma oportunidade e acabou isso. Mostrei que tinha condições.

Condição de jogar e personalidade para manter não só o cabelo grande como o estilo hippie (embalado pelo som dos Beatles), tamancos baianos e bolsa a tiracolo. Com esse passado, não é supresa perceber como o Muricy rígido nos treinamentos dá lugar a um cara liberal em relação a outros assuntos. Cobranças, só dentro das quatro linhas.

– Deixo para cobrar o cara em campo, senão fico insuportável. Já cobro bastante em campo, não tenho que cuidar da vida do cara, o que ele fala, veste, se usa brinco… Nisso, eu sou light.

O fim dos cabelos longos imposto por “Seu Poy” o tempo fez questão de tratar rapidamente. As peladas e conversas nas calçadas de Pinheiros também passaram a ser raras graças à fama, mas nada foi capaz de tirar de Muricy a obsessão pelo futebol. Foram-se os fios longos, ficaram as lembranças. Memórias que o treinador refrescou em bate-papo com o GLOBOESPORTE.COM, em que elegeu Zico o melhor que viu jogar (Pelé, ele considera um caso à parte), escalou sua seleção de todos os tempos, enumerou os gols mais bonitos que já viu  e apontou Kaká como um jogador semelhante àquele “rebelde” que defendeu o São Paulo na década de 70.

Confira abaixo a entrevista:

Já ouvimos você falar algumas vezes que te dá prazer uma boa conversa sobre futebol e o quanto você gosta deste esporte. É uma paixão comum a todo brasileiro, mas para você, especificamente, quando teve início?

Muricy Ramalho FluminenseMuricy Ramalho sorri durante entrevista
(Foto: Alexandre Durão / Globoesporte.com)

Foi com meu pai. Ele adorava futebol, tinha amigos no meio profissional, e os caras iam na minha casa. Tipo, Ademir da Guia, esses caras famosos. Meu pai era palmeirense e me levava aos jogos do Palmeiras no Pacaembu. Nem existia o Palestra Itália. Fazia churrascos lá em casa com jogadores. Assim, comecei a gostar. Despertou o interesse pelo negócio.

E nas ruas? Você era muito peladeiro?

Jogava o dia todo na rua, descalço, cortava o pé toda hora. No meu tempo era difícil, não era como hoje. Não tinha calçado, tênis adequado. Meus pais tinham que me chamar, senão nem volta para casa. Não tínhamos muito divertimento, não tinha negócio de cinema, nada. A diversão era jogar bola no bairro, na rua. E eu ficava o dia todo fazendo isso.

O Tata (auxiliar técnico) até já contou a história de que vocês eram adversários, jogavam um contra o outro…

É. Era time de rua contra rua. Disputavam a flâmula. Hoje nem existe mais isso. Ele era de um bairro próximo. Conheço o Tata desde garoto.

E já nessa época havia o desejo de ser jogador?

Eu queria. Quando me levaram para escolinha do São Paulo, eu tinha nove anos, e comecei a competir. Isso é que desperta: quando começa a disputar e a ganhar, a querer ganhar. É assim o ser humano. Meu tio foi quem me levou, e gostei do negócio. Fui aprovado e passei a jogar campeonatos. Foi quando tive certeza de que meu futuro era ser jogador.

Você é um cara que prega o trabalho, é muito obstinado, perseverante. Mas nesse período da escolinha até ser jogador, pensou em desistir alguma vez?

Não pensei em desistir, mas algumas vezes parava de treinar. Eu tive um problema com um treinador argentino, o (José) Poy. Depois ele virou meu amigo, aí é que eu fui entender o cara. Eu tinha cabelo muito grande, vinha nas costas, e ele mandava eu cortar, achava que não podia jogar assim. Eu respondia: “Não vou cortar, não, meu”. Ele dizia: “Então, você não vai treinar”. E eu ia embora. Aconteceu isso umas cinco, seis vezes. Eu falava com meu pai: “Esse cara está me enchendo o saco”. Ainda tinha que acordar cedo para treinar, o futebol para quem está começando é difícil. Pô, acordava cedo e ainda tinha que ir embora? Mas aí ele me deu uma oportunidade e acabou isso. Mostrei que tinha condições. Outro momento difícil foi a contusão que tive em 1977, quando com certeza ia ser convocado para a Copa do Mundo (de 1978, na Argentina). Tive esse problema e fiquei fora. Aí, sim, quase que parei. Não tinha essa operação que tem hoje, que é mais moderno e rápido. Agora, desistir de tudo nunca tive vontade.

Você começou na escolinha muito cedo, e fala-se muito que a parte competitiva tira o romantismo do futebol. De alguma forma você procurava manter isso dentro de você? Mesmo já treinando, mantinha vivo o lado torcedor?

Sinto falta da liberdade. Nasci em um bairro de gente humilde em São Paulo, onde as pessoas sentam na calçada para comer churrasco. Sou um cara de hábitos simples"
Muricy

Eu morava perto do Morumbi e ia ver jogo. Não era um baita torcedor, mas gostava de ver jogo. Eu era sócio do São Paulo. No meu tempo, o Morumbi não era todo fechado e redondo como hoje. Na parte do clube, ele era aberto. E a gente ia pro morro ver os clássicos, que eram todos lá. Eu gostava de ver o Pelé jogar. O Santos ia jogar e eu ficava enlouquecido. Tudo do morro, não entrávamos no estádio. Então, víamos o Pelé, o Rivelino quando o Corinthians vinha. E esses caras eram muito famosos. Hoje em dia se encontra os jogadores toda hora, mas antigamente não era assim. Essa era minha paixão. Depois, descia pelo elevador para ver esses caras importantes passarem. Fui criado nesse meio.

Você ainda vive no futebol, mas há muita diferença dessa época para o Muricy de hoje, até mesmo da época de jogador. Do que você mais sente falta?

Sinto muita falta da liberdade. Eu nasci em um bairro de gente humilde em São Paulo, onde as pessoas sentam na calçada para comer churrasco, essas coisas, e sinto falta. No fim do ano passado consegui fazer isso. Meus amigos são todos de Pinheiros e todos os sábados há um encontro, se juntam num bar na calçada… Em 2010 eu apareci de surpresa. Eles ficaram enlouquecidos. É isso que sinto falta, de ser mais varzeano, da várzea. Mas no que faço tem que ser muito profissional, correto, estudar… Isso me tira muito da vida que eu gosto. Sou um cara de hábitos simples. E é dessa simplicidade que sinto falta.

E de jogar você sente falta?

Não. Isso, não. Podia jogar nas brincadeiras da comissão, mas não jogo. Até pela idade. Começamos a nos machucar muito. Tenho 55 anos, tive problema de joelho e não tenho muita vontade.

Como é sua ligação com o futebol fora do trabalho? É um cara que vê muitos jogos na TV?

O tempo todo. Vejo jogos diariamente. Qualquer um. Vejo a A-2 de São Paulo, que é muito boa, tem o time em que meu filho é estagiário (o Paec). Vejo jogo para caramba. E tenho que ver, né? Tenho que estar atento. Na Europa, gosto do futebol inglês, que é onde estão os melhores do mundo, e do Barcelona, que é o melhor time do mundo, por ter o Messi e aqueles caras todos. Mas vejo futebol o dia todo. Agora, por exemplo, tenho visto a Copa São Paulo.

Para quem jogou, assiste, torceu e trabalha com futebol, queria que você listasse os cinco maiores que viu jogar?

O Pelé é o intocável, é o fera de todos. Mas o mais completo foi o Zico. Todos são craques, o Rivelino, por exemplo, mas o Zico era as duas pernas, o drible, o cabeceio – a despeito da altura -, a bola parada era perfeita. Foi um cara completo. Vi muitos, mas não como ele. Mas o Ademir da Guia também era um monstro. O Gerson eu consegui pegar o finalzinho da carreira. O Pedro Rocha, que na década de 70 esteve entre os 10 maiores do mundo e tive a felicidade de jogar com ele. São esses caras.

E dos que você comandou? Quais cinco mais te impressionaram?

Ah, o (Rogério) Ceni era um. Ele eu conheci desde moleque e é meu amigo particular até hoje. Foi um dos profissionais mais corretos que vi. Como se cuida, treina e quer ganhar, vai durar bastante ainda. Outro é o Fernandão, que está no São Paulo e tentei muito trazer para o Fluminense. É um cara positivo e muito correto. Trabalhei com o Cafu que era um fora de série, Toninho Cerezo, Leonardo, que era um grande profissional como jogador, corretíssimo. Foi muita gente boa.

Você vem de uma escola do Telê Santana que preza muito a repetição, o treinamento. Acha que com esse tipo de trabalho é possível transformar um jogador ruim em um bom jogador ou o futebol é mesmo talento?

campinho seleção Muricy

A repetição melhora o jogador. Eu faço muito isso nos treinos. Mas melhora o cara que é bom. Quem é ruim não tem como. Vai dar para melhorar os fundamentos, mas não para transformar em um grande jogador. Talento nasce com a pessoa. Nós ajudamos a melhorar isso: o drible, o passe, o chute… Mas se não tem talento não tem jeito.

Hoje em dia o futebol é muito midiático, muito globalizado, muito marketing. Você, que vê tantos campeonatos, enxerga muita “enganação”? Aquele jogador que não é tudo que “vendem”.

(Risos). Não acho assim. Como vejo de tudo quanto é jogo de futebol, acho que há curiosidades. Por exemplo, começou a Série A-2 do Paulista e é importante o treinador conhecer o campeonato. É um futebol diferente. É importante saber identificar isso. Não é qualquer um que joga nessa realidade. Procuro ver o lado bom do futebol. Lógico que há o lado ruim, todo mundo sabe disso. Há time ruim, jogador ruim, mas gosto de ver o lado bom. Por exemplo, não gosto de ver o futebol francês. Acho uma chatice. Todo mundo joga igual, ninguém sai do lugar. Mas em compensação gosto de ver o Messi, que é o melhor do mundo, gosto do Campeonato Argentino, que é uma guerra legal. É isso. Por mais que o campeonato não seja bom, sempre dá para aprender alguma coisa.

Em tanto tempo envolvido com o futebol, qual o momento mais inesquecível que você vivenciou? Aquele que vem primeiro na sua cabeça?

O que marca a todos é o primeiro jogo como profissional. Meu primeiro foi contra o Peñarol no Morumbi. Eu tinha 16 anos. Então, eu sempre concentrava, mas nunca nem ficava no banco. Estavam me preparando para o profissional. Era um amistoso, mas os dois jogadores da posição, o Zé Carlos e o Silva, tiveram problemas, e o Seu Poy, aquele treinador argentino, me chamou e disse: “Olha, você vai jogar”. Eu fiquei até assustado. Não esperava. E só tinha cara fera tanto no São Paulo quanto no Peñarol. Esse jogo eu não esqueço. Entrei e arrebentei. Como todo moleque, era atrevido, irresponsável, joguei demais e nunca mais saí do time.

No meio do futebol atual criou-se até um termo que é a “boleiragem”. Representa aquele cara que fala, se veste e age como jogador. Como se fosse uma espécie de personagem. Na sua época também existia isso?

O jogador hoje realmente virou um personagem. Está sempre com aquele medalhão, o telefone celular na mão… Não sei o que tanto eles falam. Eu não era boleirão, mas era meio rebelde. Na minha época, era “Beatles”. Tinha ídolos que queriam mudar o mundo"

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