Diante de todo o noticiário negativo que ronda Michel Temer (MDB), é possível que a maior parte dos brasileiros já tenha se perdido no emaranhado de investigações contra o presidente da República. Afinal, qual é a relação do “quadrilhão do PMDB” com o Porto de Santos? O que tem a ver a reforma na casa da filha do presidente com a antiga Secretaria de Aviação Civil (SAC) da Presidência?
Ao todo, o presidente é alvo de cinco inquéritos no STF, e já foi denunciado duas vezes. Ambas as denúncias foram interrompidas pela Câmara dos Deputados em 2017, e só voltarão a avançar quando o emedebista deixar o cargo.
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Adversários de Temer atribuem as movimentações políticas recentes do presidente a essa necessidade de se proteger judicialmente após o dia 1º de janeiro de 2019: as denúncias continuarão paradas se Temer for reeleito, e ele continuará tendo foro no Supremo Tribunal Federal (STF) caso se torne ministro do próximo governo.
Na semana que vem, o emedebista se reúne com o pré-candidato do PSDB à Presidência, Geraldo Alckmin. Se não for candidato à reeleição, Temer precisa pelo menos garantir sua influência no processo eleitoral – a ascensão de um sucessor que não faça parte de seu campo político pode ter consequências graves para ele.
Adversários do presidente dentro do próprio MDB disseram à BBC Brasil, sob condição de anonimato, que uma eventual queda pode trazer problemas sérios não só para ele, mas para amplos setores do partido: o presidente é uma figura central da legenda há anos, especialmente em São Paulo, e conhece a fundo o funcionamento (e o financiamento) do partido.
No começo da semana, porém, o presidente disse que não teme ser preso em 2019, depois de eventualmente deixar o cargo. “Não temo, não [ser preso]. Não temo. Seria uma indignidade e lamento estarmos falando sobre isso. Eu prezo muito a instituição Ministério Público que, aliás, teve em mim um dos principais suportes”, afirmou ele à rádio CBN.
A BBC explica e detalha abaixo quais são e como estão as investigações contra o presidente.
Porto de Santos
As suspeitas de um possível esquema de corrupção envolvendo o presidente e o porto no litoral de São Paulo são antigas – vêm de antes da Lava Jato e até mesmo da primeira eleição de Temer como vice-presidente da República (2011).
Em março de 2001, por exemplo, a revista Veja publicou uma reportagem implicando o então deputado federal num esquema de cobranças de propina das empresas que atuavam no porto. Uma investigação chegou a ser aberta, mas foi arquivada pelo STF.
A reportagem tinha como ponto de partida um processo de divórcio litigioso, envolvendo o ex-presidente da Companhia das Docas do Estado de São Paulo (Codesp), Marcelo de Azeredo.
A Codesp é uma empresa estatal, encarregada de administrar o terminal de cargas. Para tentar obter um valor maior na divisão dos bens, a ex-mulher de Azeredo, Erika Santos, disse que “o grosso da renda” dele vinha de pagamentos do esquema de corrupção no porto. Ela entregou também planilhas que estariam ligadas ao caso – uma das quais mostra o nome de Temer e de um amigo do presidente, o ex-coronel da PM João Baptista de Lima Filho, como destinatários de valores.
A investigação atual é quase fruto do acaso: em conversas gravadas por delatores da JBS, o ex-deputado e ex-assessor de Temer Rodrigo Rocha Loures teria dado a entender que usaria empresários com atuação no porto para lavar dinheiro de subornos.
A apuração tramita sob a forma de um inquérito (de número 4621), no STF. Formalmente, quatro pessoas são investigadas: Temer, Rocha Loures e os empresários Ricardo Mesquita e Celso Grecco, da empresa Rodrimar. A partir das suspeitas iniciais, os investigadores passaram a trabalhar com a hipótese de a Rodrimar – dona de uma concessão para atuar no porto – ter pagado propina a Temer. A contrapartida seria um decreto assinado pelo presidente, em maio de 2017, que permitia às empresas renovar suas concessões no porto por até 70 anos.
Para os investigadores, o grupo político do qual Temer faz parte mantinha, desde aquela época, influência política sobre o funcionamento do porto – e cobrava propina de empresas que ali atuavam.
Em um despacho sobre o caso, o ministro do STF Roberto Barroso escreveu que os indícios já conhecidos “demonstram a possibilidade de se estar diante de um esquema contínuo de concessão de benefícios públicos em troca de recursos privados para fins pessoais e eleitorais, que persistiria por mais de 20 anos no setor de portos, vindo até os dias de hoje”.
A defesa de Temer nega irregularidades – e diz que a Rodrimar sequer se enquadra nos critérios definidos pelo decreto, o que afastaria a tese de corrupção.
Os investigadores acreditam que outras empresas do Porto de Santos podem estar envolvidas: é o caso do grupo Libra, cujos sócios doaram R$ 1 milhão para o MDB, de forma oficial, nas eleições de 2014 – em 2015, a empresa conseguiu um aditivo vantajoso em seu contrato de arrendamento, mesmo tendo uma dívida de R$ 2 bilhões com a Codesp.
Maristela Temer
No fim de março, a Polícia Federal deflagrou a operação Skala, cujo objetivo era justamente investigar o possível envolvimento de Temer com irregularidades no porto de Santos. Foram presos os sócios da Rodrimar e uma das donas do grupo Libra – os demais sócios estavam no exterior. A operação também prendeu dois amigos de Temer: o advogado José Yunes e o ex-coronel da PM de São Paulo, João Baptista Lima Filho.
A relação entre Temer e o “Coronel Lima” remonta aos anos 1980, quando o presidente era secretário de Segurança do governo estadual paulista. As famílias de ambos são amigas desde aquela época – e como mostra o episódio do divórcio do ex-presidente da Codesp, existem suspeitas de que ambos conduzam negócios escusos há décadas.
Investigadores apuram se Lima Filho e seu escritório de arquitetura, a Argeplan, foram usados para “captação de recursos irregulares” para Temer. Tanto o presidente quanto seu amigo negam. Antes de ser preso em março, o ex-coronel utilizou-se de atestados médicos durante oito meses para adiar a prestação de depoimento à PF. Quando foi preso, ficou em silêncio.
No momento, Lima Filho é a linha de investigação mais “quente” em relação ao presidente neste inquérito. A Polícia Federal apura, entre outras coisas, se a reforma da casa de uma filha de Temer, Maristela, foi usada para lavar dinheiro de propina. A mulher de Lima Filho, a arquiteta Maria Rita Fratezi, atuou na reforma do imóvel, que fica em um bairro nobre de São Paulo – e teria feito pagamentos por alguns dos materiais usados na reforma com dinheiro vivo.
Para a Polícia Federal, a obra representa a primeira prova de uma relação financeira entre Temer e Lima Filho. No momento, a PF ouve testemunhas ligadas ao caso. Já a defesa de Temer diz que Fratezi nunca foi contratada para atuar na obra – ela simplesmente ajudou Maristela Temer, a quem conhece desde pequena, a tocar a obra num período em que a filha do presidente morou fora de SP.
Em depoimento à Polícia Federal, Maristela admitiu que Fratezi fez alguns pagamentos – mas a obra foi custeada por dinheiro que ela tomou emprestado, sem participação do pai. Já a arquiteta, ao ser inquirida pela Polícia, disse que não iria comentar.
A investigação sobre o Porto de Santos também levou o relator do caso no Supremo, ministro Roberto Barroso, a autorizar a quebra do sigilo bancário de Michel Temer, em março. O presidente disse que daria à imprensa acesso aos seus dados financeiros, mas depois recuou.
Secretaria de Aviação Civil
O inquérito menos famoso contra Temer é um desdobramento das delações premiadas de executivos da empreiteira Odebrecht.
No começo de março, o relator da Lava Jato no Supremo, ministro Edson Fachin, determinou a inclusão de Temer na investigação que tinha como alvos iniciais os ministros Eliseu Padilha (Casa Civil) e Moreira Franco (Minas e Energia). Tanto Moreira quanto Padilha foram titulares da antiga Secretaria de Aviação Civil (SAC) da Presidência da República – e a suspeita da PF é a de que os dois tenham usado o posto para favorecer a empreiteira em troca de propinas.
O delator Cláudio Melo Filho disse ter acertado um repasse de R$ 10 milhões para o MDB, num jantar ocorrido no Palácio do Jaburu (residência oficial de Temer), em maio de 2014. À mesa, Temer, Padilha, Marcelo Odebrecht e o próprio Cláudio, que na época era uma espécie de chefe do lobby da empresa em Brasília.
O presidente confirma o jantar, mas diz que não tratou de valores.
Embora a história já seja conhecida, só agora alguns dos depoimentos ouvidos pela PF começam a vir a público.
Em um deles, o policial militar paulista Abel de Queiroz disse ter feito entregas de dinheiro destinadas a um amigo próximo de Temer, José Yunes, de 2013 a 2015. Abel teria ido ao escritório de Yunes, no bairro paulistano do Jardim Europa, pelo menos duas vezes, segundo depoimento obtido pelo jornal Folha de S. Paulo e divulgado no começo desta semana.
À época, Abel trabalhava para a Transnacional – empresa de logística contratada por várias companhias investigadas na Lava Jato, inclusive a Odebrecht.
“Há fortes elementos que indicam a prática de crimes graves, consistentes na solicitação por Eliseu Padilha e Moreira Franco de recursos ilícitos em nome do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e de Michel Temer, a pretexto das campanhas eleitorais (de 2014)”, escreveu Rodrigo Janot, então procurador-geral da República, em março de 2017, ao pedir a abertura do inquérito.
A inclusão de Temer no inquérito foi pedida pela sucessora de Janot na PGR, Raquel Dodge. Ao aceitar o pedido, Fachin ressaltou que a inclusão de Temer não significa que ele seja culpado – ao fim da investigação, a PGR poderá tanto denunciar o presidente quanto arquivar a investigação.
Caso JBS
É talvez a investigação contra Temer mais conhecida do público. O caso veio à tona na noite de 17 de abril de 2017. Horas depois das primeiras notícias, um grupo de militantes de partidos de esquerda já estava em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília, pedindo a renúncia de Temer. Por algumas horas, o país ficou em dúvida sobre se o presidente resistiria ou renunciaria ao cargo.
Fazem parte desta investigação as famosas imagens gravadas pela PF de Rocha Loures andando com uma mala de dinheiro pelo centro de São Paulo. A mesma delação trouxe o áudio da conversa entre Temer e Joesley Batista, na qual o presidente diz ao empresário que “tem que manter isso, viu?”, depois de Joesley afirmar que tinha uma “boa relação” com Eduardo Cunha.
Para a Polícia Federal e o Ministério Público, o acordo de delação dos executivos da holding J&F (controladora do frigorífico JBS) mostra Michel Temer cometendo pelo menos dois crimes: recebimento de propina, por meio de Rocha Loures (corrupção passiva) e a tentativa de barrar as investigações da Lava Jato ao tentar comprar o silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha (obstrução de Justiça). O caso deu origem a dois inquéritos no STF (4483 e 4517).
O inquérito 4483 resultou na primeira denúncia de Janot contra Temer, em junho de 2017. A peça, que acusa o presidente de corrupção passiva, acabou tendo sua tramitação paralisada pela Câmara dos Deputados: no dia 2 de agosto, os parlamentares barraram investigação por 263 votos a 227 – eram necessários 342 votos para a aprovação. O processo continuará somente depois que Temer deixar a presidência.
O dia seguinte à divulgação do caso, 18 de abril, entrou para a história por vários motivos.
No começo da manhã, a Polícia Federal saiu às ruas com a operação Patmos, que foi autorizada pelo STF e tinha como alvos o senador Aécio Neves (PSDB), além de diversas pessoas próximas a Temer, como o próprio Rocha Loures.
À tarde, o presidente reuniu jornalistas no Palácio do Planalto. “Não renunciarei!”, exclamou, dando uma pancada no púlpito de madeira em que falava. “Repito: não renunciarei. Sei o que fiz, e sei da correção dos meus atos. Exijo investigação plena e muito rápida”. O fim do dia foi marcado pelo pior pregão da Bolsa de Valores de SP em anos: o Ibovespa (que mede a atividade do mercado) caiu 8,8%, e o dólar disparou 8,15%.
“Quadrilhão do PMDB”
Antes de deixar o comando da Procuradoria-Geral da República, em setembro, Janot resolveu apresentar as denúncias relativas à principal linha de investigação da Lava Jato, iniciada em 2015. O pacote incluiu quatro peças acusatórias: uma contra a cúpula do PT, outra contra os dirigentes do PP (Partido Progressista) e duas contra o comando do MDB – uma para a ala do partido no Senado, e outra para a Câmara.
Ex-presidente da Câmara, Temer entrou na segunda – ao lado de ex-caciques do partido como Henrique Eduardo Alves, Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Eliseu Padilha e Moreira Franco, Rocha Loures e os delatores Joesley Batista e Ricardo Saud (da JBS).
Neste caso, Janot acusa Temer e os outros emedebistas de cometer vários crimes de corrupção a partir de 2006, envolvendo vários órgãos e empresas públicas: Petrobras, Furnas, Caixa Econômica, Ministérios da Agricultura e Integração Nacional, e a própria Câmara. Segundo o ex-PGR, o grupo recebeu pelo menos R$ 587 milhões de propina, somando todos os casos. Todos os políticos mencionados – inclusive Temer – negam irregularidades.
Apesar de incluir os delatores da JBS, a narrativa desta denúncia começou a ser construída bem antes pela PGR – usando, também, elementos das primeiras delações premiadas da Lava Jato, como a do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, e de delatores da Odebrecht.
Em outubro passado, a segunda denúncia contra Temer teve sua tramitação interrompida pela Câmara, a exemplo da primeira. Ao todo, 251 deputados votaram com Temer, e 233 contra. Neste caso específico, Temer era acusado dos crimes de organização criminosa e obstrução de Justiça. O inquérito (de número 4327) encontra-se atualmente parado no STF