No Carnaval de 2001, a escola de samba Salgueiro desfilou com um enredo que dizia: “Voa, tuiuiú, beleza!” O apelo à ave-símbolo do Pantanal encontrou eco em uma audiência improvável: membros do Ministério Público Federal, cansados de eleger listas tríplices para procurador-geral, sistematicamente ignoradas pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, que nomeou por quatro vezes sucessivas Geraldo Brindeiro para o cargo.
Os procuradores passaram a se autodenominar “turma dos tuiuiús”. “A gente não conseguia alçar voo”, lembra o ex-procurador-geral Cláudio Fonteles. “Batia sempre na trave.” Um imponente jaburu – outro nome da ave – empalhado passou a figurar na mesa do boteco de Brasília onde o grupo se reunia às sextas-feiras para arquitetar seus planos contra o “engavetador-geral da República”, como Brindeiro ficaria celebrizado, por não encaminhar ao Supremo Tribunal Federal denúncias que não interessavam ao governo.
Desde a nomeação de Fonteles, em junho de 2003, no início da presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, os governos petistas têm nomeado para o cargo o mais votado nas eleições da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Os tuiuiús do Planalto Central passaram a fazer jus ao seu codinome. O primeiro grande voo foi a denúncia do mensalão, em 2006, feita por Antonio Fernando de Souza, cuja eleição para o cargo de procurador-geral, pela ANPR, fora ignorada por Fernando Henrique, mas acatada, ironicamente, por Lula, quando foi novamente o mais votado, em 2005 e 2007.
Nesta semana, os tuiuiús se preparam para o seu maior voo: o procurador-geral Rodrigo Janot deve apresentar a lista dos políticos envolvidos no escândalo da Petrobrás. O prazo para a apresentação expirou no sábado, sem que Janot e sua equipe de seis procuradores da República e dois promotores do Distrito Federal conseguissem concluir a revisão dos relatórios. Para aumentar o nervosismo dentro e fora do Ministério Público, diante do maior teste de sua breve história de relativa independência, Janot ainda se reuniu na semana passada com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e com o vice-presidente Michel Temer, que preside o PMDB.
Há posições políticas e jurídicas para todos os gostos entre os 1.084 procuradores espalhados pelo Brasil. Eles gozam de independência funcional. Não precisam concordar com Janot em nada. Há os que apoiam e os que se opõem a ele. Até mesmo Brindeiro continua lá, embora já tenha idade para aposentar-se.
Entretanto, Janot tem bastante prestígio na instituição. É apoiado pelos mais jovens, que ocupam as funções de procuradores e procuradores regionais, enquanto muitos subprocuradores-gerais, no topo da carreira, sentem-se relegados. Isso graças a uma política de entregar aos mais jovens o “filé”, ações que envolvem governadores, parlamentares e ministros, com foro privilegiado. “Os procuradores e procuradores regionais vão em nome do procurador-geral visitar os ministros dos tribunais superiores, que percebem que eles têm mais prestígio”, queixa-se um subprocurador-geral.
Diárias. Essas ações propiciam aos iniciantes na carreira, lotados nos outros Estados, receberem passagens e diárias para vir a Brasília. Com isso, as remunerações de membros de nível mais baixo estão se equiparando aos que estão no topo. Apesar disso, Janot usufrui, no mínimo, do benefício da dúvida, quando não de franco crédito.
Os oito integrantes do grupo de trabalho que assessora Janot em Brasília nos casos envolvendo políticos com foro privilegiado, assim como os sete procuradores da força-tarefa que investiga em Curitiba empreiteiros, doleiros, lobistas, ex-parlamentares, ex-governadores e funcionários da Petrobrás, todos escolhidos a dedo pelo procurador-geral, são reconhecidos por suas expertises e idoneidade.
“São os melhores ou tão bons quanto outros”, definem dois experientes procuradores. “São tecnicamente preparados e têm experiência reconhecida com outros casos tão ou mais complexos que esse, e gozam na carreira da maior respeitabilidade.”
À pergunta sobre se Janot poderia ceder a pressões políticas e dirigir os resultados das apurações, os dois descartam: “Não há possibilidade de passar uma coisa pelos olhos desses caras. São várias pessoas olhando a mesma coisa. Trabalham em equipe. Estão fisicamente juntos, na mesma sala e discutem caso a caso, do lado da sala do procurador-geral.” Além disso, esse grupo de trabalho em Brasília “troca informações o tempo todo com a força-tarefa em Curitiba”, argumentam. “Estão aprofundando ao máximo possível a investigação e a independência funcional é garantia da carreira.” Ou seja: se houver manipulação, perceberão, e se perceberem, vão tornar pública.
Nervosismo. Nada disso aplaca o nervosismo no Ministério Público, diante do alcance do embate com o Executivo. Afinal, tudo indica que o esquema investigado servia para financiar os principais partidos do governo. O mandato de Janot termina em setembro. É provável que seja reeleito na votação da ANPR. Mas a presidente Dilma Rousseff não é obrigada a nomeá-lo. A Constituição diz que o presidente pode escolher qualquer procurador com mais de 35 anos de idade.
Até aqui, a partir de Lula, o mais votado na ANPR foi nomeado. Mas histórias que circulam nos corredores da Procuradoria sugerem uma certa precariedade nessa breve tradição. “Não há compromisso do governo de escolher da lista”, constata um veterano subprocurador-geral. “Escolhe se coincide. Há intenso trabalho político depois da lista formada de escolher o primeiro da lista. Mas ele tem de mostrar que vai manter o diálogo com o governo.” Janot, por exemplo, teria prometido isso, e cumprido na semana que passou, com seus encontros com Cardozo e Temer, embora os três neguem ter falado da lista.
Fonteles conta que, quando Lula o chamou na biblioteca do Palácio da Alvorada para dizer que iria nomeá-lo, disse ao presidente: “Vou ficar só dois anos e vou ser extremamente independente. Não quero recondução. Pense bem. O jogo vai ser bem aberto”. Lula teria respondido: “Vou correr esse risco”. Fonteles foi criticado por não ter denunciado o então chefe da Casa Civil, José Dirceu, no escândalo envolvendo seu subordinado, Waldomiro Diniz, e o empresário do jogo Carlinhos Cachoeira.
Em 2009, no calor do mensalão, Lula teria pensado em nomear procurador-geral Wagner Gonçalves, segundo colocado da lista da ANP, considerado à esquerda do mais votado, Roberto Gurgel. “Queremos ter nosso Brindeiro”, ironizavam os petistas. Sepúlveda Pertence, ex-procurador-geral e ex-ministro do STF, conta que dissuadiu Lula. Pertence brincou com o presidente, parafraseando o general Golbery, que disse: “Criamos um monstro”, referindo-se ao Serviço Nacional de Informações, na ditadura militar.
O “monstro”, no caso, era a independência do MP. Um ou dois anos depois, conta Pertence, Lula concordaria com ele. Gurgel foi outro algoz do PT no mensalão. O fato é que foi reeleito pela ANPR em 2011, e nomeado por Dilma. “O ex-presidente não se arrepende, ao contrário, tem orgulho, de ter respeitado a autonomia do Ministério Público e sempre nomeado o primeiro colocado na lista tríplice”, garantiu a assessoria de Lula.