Peixes da pesca predatória na piracema saem de Leverger em insuspeitas mochilas

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Toneladas de filés de pintados e cacharas são traficados para abastecer peixarias, restaurantes e churrascarias da Baixada Cuiabana durante a piracema

NELSON SEVERINO 


Acondicionados em plásticos dentro de mochilas com espaço para até 30 quilos – é dessa forma, sem despertar a menor suspeita das autoridades policiais e do meio ambiente, que toneladas de filés de pintados e cacharas, os peixes de maior valor comercial no mercado, têm saído de Santo Antonio de Leverger para abastecer diariamente peixarias, restaurantes e churrascarias da Baixada Cuiabana durante a piracema.

Suspeita-se que o esquema dos pescadores artesanais funciona há muitos anos, mas só vazou agora através de uma fonte que atua no mercado do peixe da região e que por questão de segurança não é revelada nem aos órgãos competentes para combater esse crime ambiental – Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema), Pelotão Ambiental da Polícia Militar, Juizado Volante Ambiental (Juvam) e Delegacia de Polícia Especializada em Meio Ambiente (Dema).


O grupo que participa do esquema das mochilas está incidindo em vários crimes: pescando no período de reprodução das espécies da Bacia do Paraguai; utilizando equipamentos proibidos para a pesca mesmo fora da piracema, incluindo tarrafas e redes de arrastão; transportando o peixe em filés; capturando espécies fora do tamanho permitido pela legislação pesqueira de Mato Grosso, pois quem compra clandestinamente o pescado não quer nem saber da sua origem.

“Agora que acabou a piracema [que vai do início de novembro até o último dia do mês de fevereiro] só com muita sorte conseguiríamos fazer um flagrante de alguém transportando peixe cortado em mochilas em carros ou mesmo nos ônibus do transporte coletivo da linha Cuiabá-Leverger”, admite uma fonte do Ministério Público do Estado (MPE), que poderia pedir para a Polícia Civil e a Polícia Militar realizar o trabalho de checagem de mochilas suspeitas.

Pescadores mais antigos ouvidos pelo HiperNotícias garantem que nos últimos anos quem pesca dentro da lei não ficou “nem bem de vida” e sugerem que como o Rio Cuiabá é federal, pois corta dois estados – Mato Grosso e Mato Grosso do Sul – a Polícia Federal bem que poderia investigar a fulminante evolução patrimonial de muitas pessoas que vivem da atividade pesqueira na Baixada Cuiabana. Certamente teriam muitas surpresas, principalmente em Santo Antonio de Leverger e Barão de Melgaço…

VENDA DE CARTÕES DO SEGURO-DESEMPREGO, NOVO CRIME EM MT

A prisão de pessoas com 20 ou até mais cartões do seguro-desemprego pago pelo Governo Federal aos pescadores artesanais nos quatro meses de vigência da piracema, revela um novo crime no Estado, induzido pelo lucro fácil da pesca no período de desova dos peixes: a venda antecipada dos quatro salários mínimos (4 x R$ 724,00 = 2.896,00) pela metade desse valor (R$ 1.448,00), mas que retorna rapidinho para as mãos de quem aparentemente perdeu dinheiro .

Segundo o coordenador de Fiscalização da Pesca da Sema, Júlio Reiner, a primeira coisa que o pescador que vende a antecipação do seguro-desemprego faz é comprar chumbadas, linhas indianas e bóias para tecer redes e tarrafas – geralmente em regime de mutirão – e cuja venda é proibida em Mato Grosso, exceto as tarrafinhas com linha 0,40, exclusivamente para captura de iscas como sardinha, saicanga, sauá, etc.

Algumas tarrafas chegam a ter até 180 m de comprimento, com malhas de 4 a 5 cm. Depois que a rede é estendida em toda a largura do Rio Cuiabá, o maior da região, os pescadores sobem de barcos e canoas até certa altura do rio e dão início ao chamado “arrastão”, que consiste em descer o curso d’água, puxando outra rede do mesmo cumprimento da outra, eliminando qualquer possibilidade de peixes de maior porte, como os grandes bagres, de escaparem do cerco.

Imagem da Internet

Pescadores vendem o cartão de seguro-desemprego que recebem durante a piracema para financiar a aquisição de tarrafas e fazer arrastões no Rio Cuiabá


Revela Davi Leitun Pereira, chefe da Seção de Políticas de Trabalho, Emprego, Renda e Economia Solidária da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Mato Grosso que existem no Estado 8.500 pescadores artesanais cadastrados e que recebem o seguro-desemprego do Governo Federal. O seguro-desemprego é custeado pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador(FAP). O cadastro dos pescadores artesanais passou a ser feito por municípios e não mais pelas colônias de pescadores.

Com base no número de pescadores artesanais cadastrados em Mato Grosso, o Governo Federal gasta com o seguro-desemprego R$ 6,154.milhões por mês na piracema e R$ 24,616 milhões nos quatro meses em que os pescadores deveriam se manter afastados dos rios em que pescam. Ou então trabalharem, já que estão recebendo do governo, na defesa dos rios para preservar essa riqueza da natureza.

Há cerca de quatro décadas trabalhando em Mato em áreas ligadas ao meio ambiente e a piscicultura, o biólogo Keve Zobogany de Szonyi de Silimon garante que nem a metade dos pescadores cadastrados para receber o seguro-desemprego do FAP vive da atividade pesqueira. “Se o governo decidisse fazer uma investigação séria no setor pesqueiro, iria descobrir que a maioria que recebe o dinheiro do seguro-desemprego faz de tudo na vida, menos pescar”, afirma Zobogany

CONTROLAR A PESCA PREDATÓRIA É UMA MISSÃO QUASE IMPOSSÍVEL

O controle da pesca predatória como a que vem sendo praticada sistematicamente em Santo Antonio de Leverger, inclusive na piracema, é uma tarefa muito difícil, conforme admite Júlio Reiner. A começar da falta de pessoal: o setor de Fiscalização da Pesca tem apenas 25 fiscais, quando o mínimo necessário seria 150 profissionais. Só pescadores artesanais são 13 mil em todo o Estado e não apenas 8.500 – revela o coordenador da Sema.

Segundo Reiner, faz muito tempo que os contraventores da pesca abandonaram os velhos Del Rey, Kombis e Brasílias são usados para transportar pescado ilegal.Quando flagrados em rodovias ou estradas vicinais, eram abandonados. Hoje o pessoal usa possantes Hilux, que com velocidade média de 150/160 km/h cobrem o trecho entre Barão de Melgaço e Cuiabá em 40 minutos.

A Sema tem realizado apreensões de grandes quantidades de pintados e cacharas em residências de Cuiabá, onde o pescado fica armazenado e depois é distribuído através de “formiguinhas”, que fazem entregas em pequenas quantidades para não despertar suspeitas. Certamente é o mesmo sistema que está sendo utilizado para distribuição de pescado que chega em mochilas insuspeitas de Santo Antonio de Leverger, admite ele.

Hugo Dias/HiperNotícias

Sema tem realizado apreensões de grandes quantidades de pintados e cacharas em residências de Cuiabá, onde o pescado fica armazenado e depois é distribuído


Para dificultar ainda mais o controle da pesca predatória, os pescadores que antes usavam fogos de artifícios para avisar, através de explosões combinadas como códigos, infratores que tinha fiscais no Rio Cuiabá, passaram a dispor nos últimos anos de modernos celulares e potentes sistemas de rádio em embarcações para se comunicarem. “Em algumas regiões do Pantanal Mato-grossense o sinal de celular não chega, mas o sistema de rádio funciona perfeitamente…” – afirma.

Revela também Reiner que os grupos de pescadores ou comunidades ribeirinhas que não respeitam as leis da pesca, exercendo a atividade inclusive na piracema, pelo menos à jusante do Rio Cuiabá, montam eficientes sistemas de espionagem para evitar que sejam pilhados na ilegalidade e enfrentem os rigores da legislação pesqueira. Como a fixação do pagamento de pesadíssimas fianças ou até a recusa desse benefício ao infrator para responder ao processo em liberdade.

“Nem bem a gente põe as embarcações na água em Cuiabá para descer o rio e a notícia já chegou a Estirão Comprido, uma problemática comunidade ribeirinha em Barão de Melgaço, que fica, por água, a cerca de 160 quilômetros de Cuiabá”, lamenta Júlio Reiner.

Outra dificuldade que a fiscalização da Sema e outros órgãos do Governo do Estado enfrenta para combater a pesca predatória: o Ministério da Pesca criou uma linha de financiamento para pescadores profissionais com o limite de R$ 150 mil para compra de equipamentos, incluindo lanchas e motores potentes, com juros baixíssimos e carência de dois anos para começar a pagar a dívida. No caso de cometerem violações à legislação pesqueira, a Sema não tem como persegui-los nos rios pantaneiros com suas pequenas embarcações e motores de menos de 40 HPs.

ACAMPAMENTO DE FISCAIS NAS BAÍAS PARA PROTEGER AS LUFADAS

Com o início da vazante e a saída dos peixes das baías para a calha dos rios, a Sema está montando acampamentos em pontos estratégicos nesses grandes mananciais de água para evitar que ocorram verdadeiras barbaridades antes de começar a lufada – a subida das espécies para as cabeceiras dos cursos d’água em busca de condições favoráveis para reprodução.

Com um pequeno efetivo de fiscais para atuar em todos os rios do Estado, o acampamento nas baías foi a saída encontrada pela Sema para proteger as espécies que começam a migrar, das ações de pescadores que não se preocupam em preservar a variedade de peixes que vivem nos rios mato-grossenses..

Há alguns anos, fiscais da Sema estavam trabalhando numa comunidade ribeirinha de Barão de Melgaço quando tiveram a atenção despertada para uma impressionante revoada de urubus numa área não muito distante do local onde estavam. A explicação para a concentração de tantos urubus: dias antes, tinha começado a lufada de pacus e os ribeirinhos encheram seus freezers.

Notícia dos Municípios

Agentes da Sema estão montando acampamentos em pontos estratégicos para proteger os peixes dos rios de Mato Grosso


Em seguida, foram surpreendidos com a precoce lufada dos grandes bagres – principalmente pintados e cacharas. Como não haviam comercializado ainda o peixe estocado, só tiveram uma saída para esvaziar os freezers para enchê-los de pintados e cacharas, de maior valor comercial: descartar milhares de pacu, para a festa dos urubus. 

O acampamento de fiscais da Sema em pontos estratégicos das baías pantaneiras, sem direito a feriados prolongados e descanso em finais de semana, tem o objetivo evitar a repetição de crimes contra a natureza como o praticado pela comunidade ribeirinha de Barão de Melgaço. 

Um empresário do ramo de alimentos da Baixada Cuiabana só vê uma alternativa para se acabar com a pesca predatória em Mato Grosso durante o período de defeso das espécies dos rios do Estado: o Governo Federal pagar os salários e os encargos sociais dos empregados das peixarias para que deixem de funcionar durante os quatro meses da piracema. Aí, sim, diz ele, as autoridades poderiam como controlar o consumo de peixes que teriam que ser exclusivamente de piscicultura.

“Só existe traficante de drogas, porque tem o viciado que consome. É o caso do peixe: o pescador só exerce a atividade criminosa porque tem que compra o peixe. Se não tiver para quem vender o peixe, por que ele vai pescar?”, questiona o empresário.

Mas Reiner afirma que o problema é mais complicado. Por exemplo: o dono de uma peixaria compra, com nota fiscal, 100 quilos ou mais de peixes procedentes da Amazonas, onde não existe piracema. Toda vez que os fiscais da Sema ou outras autoridades fazem uma inspeção no restaurante para checar o estoque, ele exibe o comprovante da aquisição do produto e pronto. 

Há casos também de peixarias que declaram determinada quantidade de peixes para consumo durante a piracema. Acontece, porém, que o peixe é servido no almoço e no jantar e o estoque nunca baixa – revela Reiner.

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