“Santa Maria nunca mais vai ser a mesma”, diz psiquiatra especialista em desastres

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Para José Thomé, o processo de reconstrução da cidade após tragédia está só começando

Ana Ignacio, do R7

Edison Vara/Reuters/28.01.2013Processo de reconstrução da cidade após tragédia está só começando

Desde o dia 27 de janeiro, a rotina de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, mudou. Após o incêndio na boate Kiss, que causou a morte de 239 pessoas, o dia a dia dos moradores e dos familiares das vítimas ainda não voltou ao normal. Para José Thomé, psiquiatra que trabalha com crises, traumas e desastres, o clima de luto e tristeza da cidade até pode mudar. No entanto, Santa Maria nunca mais será o que era.

— Podemos dizer que um terço da população foi atingida [direta e indiretamente] pela tragédia.

Thomé desenvolveu um trabalho com as equipes que trabalharam no desastre de Santa Catarina, após as chuvas de 2008, e atuou também em Buenos Aires, capital Argentina, após incêndio em uma boate matar 194 pessoas em 2004.

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Para ele, após essa fase inicial de acolhimento psicológico das vítimas e sobreviventes – dados do relatório da Força Nacional do SUS passados pela Secretaria Municipal de Saúde de Santa Maria indicam que foram realizados 1.305 atendimentos psicossociais em um mês – é o momento de trabalhar a reconstrução da cidade. 

— Agora é que entra o complicado. O desafio é o trabalho de reconstrução.

Thomé é presidente da Unidade Brasileira da Rede de Ecobioética, representante da Cátedra de Bioética Unesco, representante do Conselho Mundial de Psicoterapia na ONU no Conselho econômico social, vice-presidente da Associação Brasileira de Psicoterapia, co-chair da seção Intervenções em Crise da Associação mundial de psiquiatria e fundador e coordenador do curso Intervenções em Situações Limite Desorganizadoras do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

R7 – Após uma tragédia como a que ocorreu em Santa Maria, quais são os principais reflexos para a cidade?
José Thomé – Dados de estudo dizem que para cada danificado direto, há um desdobramento para 400 danificados indiretos. É a rede que se expande: família, trabalho, escola. Em Santa Maria, uma cidade de pouco menos de 300 mil habitantes, pelo menos 239 pessoas morreram. Fazendo o cálculo, podemos dizer que um terço da população foi atingida por danos psicossociais que vão desde somatizações até os distúrbios emocionais e psíquicos. Além disso, existe um dado da OMS (Organização Mundial de Saúde) diz que em uma população de 100%, quando existe um evento irruptivo dessa forma, 80% se desestabiliza temporariamente e se reorganiza em até um ano e 20% provavelmente terá algum tipo de alteração. Baseado nisso, neste caso, você tem quase metade da cidade comprometida. Isso quer dizer que Santa Maria nunca mais vai voltar a ser o que ela era e ter a vida que ela tinha. É impossível voltar.

R7 – O que é possível fazer para lidar com essa tragédia?
JT – Nossos estudos mostram que é necessário um trabalho de reconstrução. Nós temos pelo menos 200 e poucos famílias enlutadas. O luto demora um ano para ser digerido para que a gente passe por todas as datas significativas e, em cada data, a gente se despede mais uma vez. Nesse sentido, você tem um luto prolongado de boa parte da população e por isso falamos que a cidade não vai voltar a ser o que era. Para ser uma outra coisa, precisa de um trabalho e de uma assistência psicossocial de reconstrução.

R7 – Então é possível que a cidade consiga se “recuperar”?
JT – Ela vai ser outra coisa. Ou doente ou saudável, depende de como vai ser encaminhada essa reconstrução. Tem que ter um trabalho em que você considere as pessoas o tempo todo. Estamos lidando com gente que está dilacerada. Uma dor real e realidade só se resolve com realidade e não só com remédio. Não sou contra remédio, mas não posso deixar uma pessoa a vida inteira anestesiada . Caso contrário, a cidade pode ter aumento de agressividade, auto agressividade, depressão, pânico, aumento do numero de uso de drogas, dissolução de famílias, violência urbana tudo isso pode acontecer.  Por isso tem que ser monitorada de uma forma humana.

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R7 – Como fazer isso?
JT – Essa assistência, na nossa experiência, não adianta ter um protocolo pronto para tentar aplicar porque o protocolo não considera a subjetividade humana ou o fator humano e acaba equalizando tudo através dos sintomas e quando você está vendo sintomas você não esta vendo a pessoa.  Com isso, a gente não trata mais pessoas, a gente trata sintomas. Esse desastre envolve perdas, gente jovem, muitos são arrimos de família, envolve questões jurídicas e isso tudo afeta a estrutura familiar e leva a outros distúrbios e você tem que trabalhar com todas as consequências desencadeadas pelos fatores humanos e não pelos sintomas.

R7 – Os sintomas como o chamado estresse pós-traumático?
JT – Exatamente. Não podemos chamar tudo de estresse pós-traumático. O trauma não está no fato, o traumático este dentro da pessoa que vai reagir em função da sua subjetividade. Temos que repensar as formas de atendimento. O que fazer quando a população sadia, “normal” é atingida por um fato inesperado e tem a vida desmontada? Eles não são doentes.

R7 – Como deve começar o trabalho de atendimento?
JT – Tudo precisa ser organizado e trabalhado com o que eu chamo de cuidar dos cuidadores.  Grande parte dos cuidadores são também afetados porque tiveram suas perdas. Você tem que primeiro cuidar dessas pessoas e depois dos afetados. É uma questão de saúde no sentido da qualidade de vida, não é saúde doença. Nosso trabalho é preparar os profissionais nas várias instâncias.

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R7 – O senhor trabalhou em casos de desastres naturais como as enchentes que atingiram o Sul do país. De que forma uma tragédia não natural, como é o caso do incêndio, muda a situação?
JT – Em Santa Cataria foi um desastre natural porque choveu 40 dias, a serra não aguentou e desmoronou. Mas ao mesmo tempo existe a interferência do homem que constrói, desmata, diminui a margem. Eu discuto muito essa questão do desastre natural ou não. O natural hoje tem uma origem antropogênica, o homem está por trás.

R7 – De que forma a busca por um culpado ou por justiça, em um caso em que responsabilidade do homem é mais direta, muda a relação com a tragédia? 
JT – A revolta, a busca de encontrar um culpado é maior nesse incêndio. Porque dá pra encontrar um culpado. Toda vez que me sinto humilhado, agredido por alguém, eu querer me vingar é humano, eu querer apontar o culpado é uma das maneiras de exorcizar o sofrimento da minha perda. Quando são objetivos como o incêndio, buscar e condenar o culpado levanta a autoestima.

R7 – E a demora em punir ou encontrar esses culpados pode causar um efeito oposto?
JT – Sim. Deprime. Em Buenos Aires, por exemplo, o prefeito sofreu impeachment. Aqui no Brasil… Acho que este fato de Santa Maria atinge a cidade, mas atinge a todos nós. Uma boa parte da população está revoltada e não é só a de lá.

R7 – O que essa tragédia revela sobre o Brasil?
JT – Mostra a inconsequência da corrupção no Brasil, um país em que tudo é válido. Eu acho que é escancarada a responsabilidade nesse fato. O responsável, o assassino, é o próprio governo. 

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